Em 1969 Mario Puzo publicava o seu livro “Poderoso Chefão” (que já foi publicado aqui no Brasil com o título “O Chefão”), tema que ele dominava profundamente por ter sido criado no bairro mais perigoso de Nova York da época, a Cozinha do Inferno, além de ser descendente de uma família italiana que foi radicalmente contra sua carreira de escritor. Ele já havia publicado outros títulos antes como Jogo Sujo, sobre um veterano de guerra, e O Peregrino Afortunado, mas sua carreira só deslanchou com seu icônico livro sobre a Máfia. Em 1972 chega aos cinemas o filme que adapta o livro, a questão é que a adaptação superou em muito a popularidade do livro. No cinema um clássico absoluto que está entre os maiores filmes da história, enquanto que na literatura é apenas um livro muito bom e interessante. Como a mesma história pode ter gerado desempenhos tão diferentes com o passar de uma mídia para a outra?
A principal diferença entre o livro e o filme é que na literatura não existe um personagem verdadeiramente central. O livro se propõe a ser sobre a família em si e tudo que abrange seu relacionamento com a Máfia. Um exemplo clássico do termo novela no sentido em que é contada a história de diversos núcleos que beiram a não ter quase nenhuma relação entre si se não fosse os Corleone. Enquanto temos uma trama central falando sobre Don e Michael, também acompanhamos a vida de Jonny, que aparece num curto momento no início do primeiro filme, mas no livro acompanhamos toda a sua trajetória na carreira de ator e cantor, fazendo um paralelo claro a Frank Sinatra. Seguimos a vida de Lucy e seu namorado médico nos hotéis de Família em Las Vegas, e são momentos onde o livro se perde completamente e fica bastante monótono. Deixamos de acompanhar os acontecimentos temáticos que permeiam toda a obra para nos ater a dois personagens completamente desimportantes. Algo que enfraquece o livro em si e desvia a história do que realmente importa.
O que o filme de Coppola fez foi eliminar essas subtramas desimportantes e criar uma linha narrativa que guiasse a história. A escolha do roteiro adaptado, que também conta com Puzo, foi decidir que a trama seria sobre a transformação de Michael de civil pacífico para chefe da Máfia. No livro, durante a maior parte do tempo, temos um foco incrível no Don Vito que assume ares de protagonista em diversos pontos. Apesar do personagem ter ficado marcado a ferro e fogo no imaginário popular por causa do filme, muito pela interpretação de Marlon Brando, se analisarmos seu papel no roteiro ele é secundário ao do personagem de Al Pacino. O primeiro filme do Poderoso Chefão é sobre a jornada de Michael, já que Vito já é um indivíduo em declínio.
Na obra original, esse ponto do Vito é um tanto diferente, pois em alguns capítulos o livro salta para trás e conta como ele se tornou um Don. Tudo que é contado no Poderoso Chefão II já está no primeiro livro, mas de forma mais simplificada, pois em relativas poucas páginas temos toda a jornada do personagem desde sua saída da Itália, a juventude em Nova York e a construção do império criminoso. O que o segundo filme de Coppola fez na origem de Vito foi estendê-la e, honestamente falando, melhorá-la, deixando ainda mais icônica. Entretanto, muitos fatos do livro se mantiveram, porém a forma que foram contados teve muito mais peso e significado para a jornada da Família.
Em termos estéticos também temos diferenças. A escrita de Mario Puzo é bem intensa quando se trata de dois temas: violência e sexo. As duas coisas trasbordam pelas páginas. Ele não poupa palavras para descrever como os personagens transam e como eles se sentem quando fazem isso, o que dá um tom romântico sensual bem acentuado. Diferente do filme, a escrita faz questão de trabalhar o relacionamento dos personagens em nível bastante pessoal, principalmente entre os maridos e suas esposas. A violência também é bem direta e nem um pouco bela, por vezes até escatológica. Acredito que a forma como a estética que Coppola pensou sua obra não deixa espaço para esses dois elementos de forma muito explícita, pois existe uma certa classe e até romantismo em criar esse universo criminoso, porém classudo.
Um tema que fica na segunda camada do filme, mas é bem mais presente no livro, é a relação das mulheres nas famílias italianas. Mario faz questão de mostrar o ponto de vistas delas dentro desta vida onde já existe uma função pré-determinada para elas e sem possibilidades de escapar. Kay, por exemplo, exerce a jornada de transformação de uma mulher minimamente dependente para a submissão total a Michael. Não é a toa que ele fecha o livro trabalhando esse conceito
Mas o que fez os filmes se tornarem mais icônicos que o livro? A esperteza de Coppola foi pegar o que havia de melhor e mais emocionante nessa história e potencializá-la ao máximo em sue filme. Colocar Michael como o personagem que passa pela transformação dá um peso muito maior a tudo o que vemos no decorrer da trama. A construção da figura de Don Vito deve muito ao livro no sentido de construir uma lenda, que foi fisicamente materializada no filme. Coppola também é muito bem sucedido em dar vida, de forma charmosa, ao mundo da Máfia com suas regras, tradições e intrigas “palacianas”. Algo que já estava no livro, mas ganha a verdadeira vida nos filmes.
O filme é uma versão concentrada de tudo que existe de bom nesse livro da forma mais bem executada possível. Mario Puzo criou uma obra que foi lapidada em outra mídia até chegar ao seu máximo no que diz respeito à história, narrativa, construção de personagem e temática. Para os fãs da trilogia acredito que a leitura é muito recomendada, pois ela parece ser uma versão estendida em alguns aspectos, além de ser muito divertido ver os diálogos que foram diretamente tirados do livro, como a icônica frase “Eu vou fazer uma oferta que ele não poderá recusar”. Entretanto tenha em mente que essas coisas a mais não são tão boas quanto à trama principal, apesar de termos momentos dos bastidores do cinema dos anos 50 que são ótimos. Vale a leitura para conhecer as origens de uma das maiores trilogias de todos os tempos.