– Já que aqui estamos, aproveitemos – disse apenas.
Mas ao descer pelo elevador, na manhã seguinte, indo para o táxi, ele percebeu-se mais empolgado. Aquele passeio faria bem ao casal. Que o fizessem inesquecível. Era um presente da esposa que queria agradá-lo. Por que não aproveitar? – refletia.
Um homem muito simpático os esperava encostado em um carro branco. O carro, felizmente, era de um modelo moderno e confortável. Logo ao cumprimentar o motorista, entrando no táxi, Luíza observou:
– Bom dia, seu Afonso! Bem alegre o adesivo no vidro do seu carro.
– Adesivo? – surpreendeu-se o homem.
– Aí – apontou Luíza.
O homem riu, agradável. Heitor fez piada:
– Três borboletinhas azuis. Me amam. Só pode! Esse bicho me persegue.
Saíram. Pouco após uma parada no segundo semáforo, estavam ainda em Boa Viagem, faltando muito para chegarem à estrada, Luíza queixa-se de súbito mal-estar, que se intensifica rapidamente. A agenda do dia estava comprometida:
– Para um hospital, seu Afonso. Rápido. O melhor. Rápido! – desesperava-se Heitor.
No hospital, Luíza foi atendida com eficiência e agilidade, sendo, de imediato, levada para o bloco cirúrgico. Heitor tenso, preocupado, cuidando das questões burocráticas e financeiras no balcão da recepção quando, vinte minutos após ter visto a mulher ser levada corredor adentro, sentiu um leve toque no ombro. Virou-se assustado, deparando-se com uma médica que gentilmente sugeriu que se sentassem.
– É grave – o marido da paciente conclui.
Era.
Com olhos maternais fixos nos de Heitor, a médica, embora com suavidade na voz, depois de rápida explicação, foi objetiva:
– Óbito.
E depois de segundos de silêncio:
– Sentimos muito…
Retornar a Belo Horizonte só, mais uma vez só e vencido pela morte, não estava no roteiro. O sofrimento era inominável. E tendo resolvido a burocracia toda, com ajuda de Afonso, o taxista, Heitor voltava ao hotel onde estavam os pertences do casal. Deixou a uma camareira as roupas e pertences de Luíza, mantendo consigo apenas uma peça: o horroroso macacão ao qual a mulher tinha apego incompreensível – na opinião dele. Nem sabia mais se era tão horroroso agora que não veria mais Luíza a usá-lo. Dobrada, a peça foi colocada na mala. A companhia daquelas borboletonas azuis na estampa suavizariam sua dor ou imprimiriam nela mais intensidade? Ele não sabia responder… Apenas sentia-se incapaz de permitir que elas voassem para longe.
A bordo do avião, em cujo compartimento especial também viajava Luíza – fria e inerte –, Heitor, experimentando a segunda viuvez, compreenderia, apesar da dor pungente que levava no peito, que a repetição se resumia apenas em aspectos práticos. Em essência, cada experiência é, em si mesma, singular. A dor de perder Luíza não era maior do que fora a de perder Maria Paula, quinze anos antes. Era dor tão doída quanto, mas diferente. Luíza era vibração, brilho, entusiasmo, mas também, suspense e inquietude. Maria Paula impulsionava-o muito menos, mas era lar, paz, sossego, colo e conforto. Era involuntário e inconteste que a dor de perder Luíza avivasse a dor de perder a primeira esposa.
Já em casa, sentindo um vazio imensurável, deixou-se cair debruçado sobre a mesa de trabalho de Luíza, num quartinho adotado como ateliê. Em meio a cavaletes, telas, pincéis, latas de tinta e óleo, Heitor permitiu que toda sua dor se liquefizesse, descendo-lhe vertiginosamente dos olhos. Aquela dor passaria, como outras haviam passado. Mas enquanto ali ela estivesse, ele se permitiria senti-la. Considerava uma antiga lição:
“Todo luto para ser superado deve ser aceito em plenitude. Luto ignorado é luto perpetuado.” – Maria Paula havia-lhe dito, certa vez, em velório de um parente.
Levou muito a sério o aconselhamento de Maria Paula e compreendeu, com os dias, que ela estava certa.
Alguns anos após o falecimento de Luíza, tendo deixado de frequentar lugares a que costumavam ir juntos, numa sexta-feira, quase hora do almoço, Heitor recebeu uma mensagem, na qual havia uma foto, pelo celular, de Clarissa, a amiga funcionária do antigo restaurante: “Olha só o que aconteceu comigo, meu amigo! Isso me lembrou de você, de Luíza e do macacão dela que você odiava. Venha nos visitar um dia desses… Um grande abraço!”
Olhando impressionado a foto, Heitor não respondeu de imediato e precisou de um tempo para se recompor. Não queria dar a mão à palmatória, mas estava difícil ignorar aquele sinal. Na imagem, ele via mais uma borboleta azul. Esta pousava na cabeça da amiga. Demorou algum tempo, semanas, para que, sentindo-se mais fortalecido, conseguisse visitar os velhos amigos. Dentre eles, Clarissa.
Curiosamente, depois de algumas visitas, algo começou a acontecer. Heitor pensava na amiga mais do que o habitual. E, por isso, mantinha-se longe. Estava maluco! Não havia outra explicação. Eram só amigos. E assim seria sempre. Mas a vida foi levando-o para mais perto dela, que, por seu lado, também questionava severamente sentimentos que supunha não dever estar sentindo. E surpreendendo a muitos, inclusive a si mesmos, Heitor e Clarissa formaram, não sem muita resistência de ambos, um casal. E, de novo, Heitor via-se metade de um casal feliz. Era mais um aprendizado. Clarissa, ele não tinha dúvidas, amava-o muito também, mas diferenciava-se das outras por ser emocionalmente independente e pouco romântica, mas era engraçada e tinha uma visão muito prática da vida.
Finalmente, com Clarissa, Heitor seria feliz para sempre. Até que a morte os separasse. E nisto as coisas não foram diferentes, pois a implacável e temida senhora também não os poupou, mas, desta vez… levando-o. Entretanto, não sem que ele deixasse à Clarissa um maravilhoso presente e experimentasse ele próprio desafios e prazeres jamais imaginados: tiveram um filho.
Ainda nova, viúva e mãe, assim como fora Luíza, Clarissa, estava, ao despedir-se do marido, imersa em intenso sentimento de desamparo. Sentimento que não duraria muito. Ali mesmo, como um relâmpago, veio-lhe um pensamento absurdo ao lembrar-se do que sempre lhe dizia a amiga cujo casamento foi a última coisa que fez na vida: “Eu falei para ele, Clarissa. Me caso nem que seja a última coisa que faço na vida.” Foi impossível não se lembrar do que havia determinado para si mesma:
– Eu sempre quis ser mãe, sabe, Luíza. Mas ser esposa, falo sempre, sei não…Não é isso o que quero. E sou covarde, medrosa. Ter filho solteira, complicado. Temo muito. Mas seria feliz demais sendo mãe apenas…
Eram surreais os pensamentos que assaltaram sua mente a partir dessas lembranças. Deixou escapar:
– Talvez eu tenha pedido por isso… – disse, ao sentir-se acompanhada por uma moça.
– Você vai ficar bem. Questão de tempo. Fomos muito felizes quando mamãe foi casada com ele. Foi maravilhoso para todas nós – disse, despedindo-se, a filha mais nova de Luíza. – Heitor Júnior será como um irmão para nós duas. Amaremos esse menino como se fosse nosso. Conte conosco no que for preciso.
Em casa, ao chegar da cerimônia fúnebre, a sós com o filho que em seu colo dormia o sono dos inocentes, Clarissa sentiu o peso da realidade. Desafios incontáveis a aguardavam. Colocando a criança em seu berço, perguntou-se:
– Vou conseguir sozinha?
Clarissa emocionava-se. Não tinham sido as coisas exatamente como imaginava. Mas, agora, por fim, sorria, esperançosa. Era preciso ter fé. A vida seguiria seu curso e, se era assim, caberia a ela decidir entre entregar-se ao desânimo ou lutar com determinação. Decidiu lutar, sem titubeios. Não estaria sozinha. Era esta a certeza que lhe trazia, naquele exato instante, ao sobrevoar insistente por todo o quarto, uma borboleta com um imponente e belo par de asas azuis.