No texto em que listei 5 obras para conhecer Júlio Verne, que você pode conferir aqui, comentei por alto alguns antecedentes históricos e filosóficos que possibilitaram o surgimento da ficção científica enquanto gênero literário. É no mínimo curioso constatar que, naquele pedaço do século XIX/início de século XX, a ficção científica gozasse de tão pouco prestígio enquanto gênero literário, e, por consequência, enquanto obra de arte, apesar de essa época ter sido marcada por acalorados debates científicos, com as descobertas que pipocavam diariamente.
Apesar de seu pretenso discurso progressista, a academia se mostra apenas mais uma dentre várias outras instituições notoriamente conservadoras, afinal uma nova descoberta pode abalar seriamente a legitimidade de um determinado conhecimento científico, fazendo com que os doutos/PHDs corram o risco de perder suas estimadas cadeiras acadêmicas (falamos um bocado sobre isso nesse TarjaCast aqui), como foi o caso de muitos físicos no começo do século XX. O mainstream da Física na época era a Física tal como concebida por Isaac Newton, até que apareceu um alemão de origem judaica chamado Albert Einstein e colocou em xeque tais concepções.
Essa resistência em reconhecer a legitimidade da ficção científica enquanto obra de arte só começou a sofrer um abalo mais significativo com as publicações de 1984, de George Orwell, em 1949, e de Farenheit 451, de Ray Bradbury, em 1953. Com a ascensão dos regimes totalitários, a temática da distopia ganhou uma relevância sem precedentes, e as obras de Orwell e Bradbury certamente deixaram (e ainda deixam!) muita gente de cabelo em pé, pois são obras de ficção recheadas de imaginação, mas ao mesmo tempo assustadoramente reais: 1984 apresenta ao leitor um Estado onipresente que controla absolutamente todos os aspectos da vida dos indivíduos, até o linguajar cotidiano deles, de modo a usar a linguagem pra condicionar seus pensamentos de submissão, e Farenheit 451 traz um Estado não menos opressor, que designa uma brigada especial de agentes pra literalmente “torrar” qualquer obra que possa questionar a legitimidade do regime instituído.
Apesar de ter começado a desenvolver uma certa aceitação na literatura, os filmes de ficção científica, por sua vez, ainda eram considerados filmes B, o que pode ser entendido como “filmes que até tinham uma certa aspiração artística, mas que nunca seriam considerados clássicos“, profecia esta que não vingou, sobretudo se lembrarmos de nomes como Metropolis, O Dia Em Que A Terra Parou, 2001: Uma Odisséia no Espaço e Laranja Mecânica. Depois de ter extrapolado os limites da literatura e ter sido assimilada pelo cinema, a ficção científica, naturalmente, atraiu a atenção dos círculos musicais, sobretudo após o surgimento do Rock, e foi pensando nisso que listamos 6 discos com temática de ficção científica, que você pode conferir adiante.
Somewhere In Time – Iron Maiden
Lançado em 1986, Somewhere In Time é um disco que parece estar a meio caminho de Blade Runner e Exterminador do Futuro, não apenas pela capa, mas sobretudo por ser um disco sobre o tempo, como o próprio nome sugere. Músicas como Wasted Years perguntam pela relevância do passado em nossas vidas, enquanto outras, como a própria Caught Somewhere In Time, nos perguntam o que temos feito do nosso tempo. Um disco que vale de sobremaneira por sua por sua temática, que é assunto corrente na ficção científica.
The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spider From Mars – David Bowie
Em maio de 1968, a França testemunhou uma greve geral que tomou proporções incalculáveis, pois essa greve geral, que começou com greves estudantis, foi assimilando vários outros adeptos de diferentes segmentos da sociedade, e acabou extrapolando os tópicos pontuais de uma greve qualquer pra se tornar um mega movimento popular, cobrando do governo francês da época posicionamentos em relação à educação, direitos humanos, liberdade sexual e outros. David Bowie certamente estava atento a essas questões quando lançou, em 1972, esse que é tido por muitos como o seu disco mais influente, narrando a ascensão e queda do alienígena Ziggy Stardust, que se fez humano para se tornar um rock star e, com sua banda, The Spiders From Mars, usar a música para experimentar “toda forma de amor” (Soul Love), abordando a liberdade sexual, bem como alertar a humanidade sobre os perigos de ela própria se destruir (Five Years, por exemplo).
2112 – Rush
2112 é, ao mesmo tempo, o nome do disco e da faixa principal deste álbum do lendário trio canadense, faixa esta de 20 e poucos minutos de duração e divida em 7 partes, que narra a trajetória de um cidadão pacato que, após encontrar uma guitarra oculta em uma catarata, descobre a sua própria condição de dominado após apresentar sua música. Esta dominação é exercida pelo Sacerdotes de Syrinx e seus grandes computadores, simbolizados pela estrela vermelha circunscrita, que é capa do disco. Lançado em 1972, o Rush fez aquilo que todo mundo está tentando fazer no mercado fonográfico atual: reinventar o modo de se pensar e fazer música. 2112 conta uma história de ficção científica que daria um ótimo roteiro de filme, além de ter sido reverenciada por outras obras, como Jogador Número 1, de Ernest Cline.
Dehumanizer – Black Sabbath
Apesar de ser fã incondicional do Black Sabbath da “fase Ozzy”, tenho uma consideração especialíssima pela “fase Dio”, já que o primeiro disco do Black Sabbath que parou nas minhas mãos foi o Live Evil. Mas não falarei aqui sobre o controverso álbum ao vivo que me apresentou o quarteto de Brimingham, e sim sobre um outro disco, também da fase Dio, que é um dos mais pesados da banda, não só por sua sonoridade, mas também por sua temática, que mescla elementos de terror e sci-fi. Lançado em 1992, as músicas deste álbum abordavam de forma embrionária questões que hoje são lugares comuns, como a invasão dos computadores domésticos (Computer God), assim como isolamento e individualismo (I), que concorrem pra “desumanizar” os indivíduos, como o próprio título do álbum sugere.
Meliora – Ghost
Numa época em que a indústria fonográfica experimenta uma certa crise de criatividade, é um respiro de alívio encontrar bandas como o sexteto sueco liderado por Papa Emeritus III, que, neste terceiro disco, se apropria novamente de uma atitude antirreligiosa para apresentar a sua versão de distopia, com disco instrumentalmente fantástico e que usa e abusa do steampunk para criar a atmosfera gráfica do disco. Ao afirmar a existência de um mundo sobrenatural supostamente “melhor” do que este mundo terreno em que vivemos (aí está a ironia do nome do disco!), a religião acaba por conduzir seus adeptos a negarem a vida terrena em todas as suas manifestações, mergulhando o mundo numa distopia comandada por autoridades religiosas (From The Pinnacle To The Pit) e pelo dinheiro (Mummy Dust), ao mesmo tempo em que há o clamor pela afirmação da vida terrena tal como ela é (Spirit e Deus In Absentia).
Megadeth – Dystopia
A galera das antigas que ainda tá na estrada sempre marca presença quando lança um disco novo, e é claro que o Megadeth se aplica a essa regra. Lançado há pouco tempo, em 2016, Dystopia é o disco que marca o ingresso do guitarrista brasuca Kiko Loureiro à banda liderada por Dave Mustaine. Com uma capa que parece um crossover entre Mad Max, Exterminador do Futuro e Oblivion, o disco versa, dentre outros temas, sobre a presença do Mal no cotidiano (Fatal Illusion) e suas consequências (a própria Dystopia, por exemplo), passando pelo o autoritarismo (The Emperor). Este é um disco que usa a temática de Sci-Fi pra trazer o bom e velho trash metal aos ouvidos de quem o aprecia. E obrigado, Metallica, por demitir o Dave Mustaine há alguns anos atrás…
Se você gostou/não gostou/sentiu falta de algum título na lista acima, deixe seu recado nos comentários, mas acima de tudo não deixe de apreciar uma boa ficção científica quando tiver oportunidade, seja com um filme, uma música ou um bom livro.