Tijolômetro – A Memória do Cheiro das Coisas (2025)

Nossas lembranças podem ser estimuladas de maneiras variadas, seja por uma imagem, um som, um sabor… No caso de A Memória do Cheiro das Coisas, o olfato é o ponto de partida para uma história com diversas camadas. Da origem dos traumas à fragilidade humana, essa parceria entre Brasil e Portugal explora temas delicados, mesmo que em diferentes profundidades.
Arménio (José Martins) é um militar português aposentado que participou do conflito armado em Angola durante a guerra colonial (1961-1974). Aos 80 anos, ele é internado contra a própria vontade em um lar para idosos. Pouco tempo depois de sua chegada, ele conhece a nova cuidadora, Hermínia (Mina Andala). Por ela ser uma mulher negra, o ex-combatente revive fantasmas do passado e velhos preconceitos enquanto precisa aceitar sua própria vulnerabilidade. Ainda assim, uma improvável relação de amizade surge entre os dois.
O longa dirigido por António Ferreira e coproduzido pela brasileira Muiraquitã Filmes se propõe a discutir diversos assuntos. Os mais presentes são o envelhecimento e a inevitabilidade da morte. A princípio, o protagonista reluta em aceitar ajuda, porém vai percebendo aos poucos que sua condição física o obriga a depender de outras pessoas, assim como os demais internos. Nesse momento, fica evidente a dedicação e a paciência dos cuidadores para o bem-estar dos idosos.
Já a memória do cheiro das coisas referida no título da obra expressa o lado mais complexo da mente de Arménio, pois serve para reavivar tanto as lembranças boas quanto as ruins. Estas últimas afetam de modo ainda mais intenso o ex-militar, cujo cérebro debilitado tem dificuldade em separar o passado do presente. Partindo daí, temos a dimensão dos traumas que a guerra lhe causou.
Isso também explica como o preconceito tomou forma não apenas no personagem central, mas em uma parcela da sociedade portuguesa. A herança da guerra foi a desumanização dos negros, que perdura mesmo após o fim do conflito. Esse racismo estrutural resultante acaba se tornando o principal obstáculo na relação do idoso com Hermínia.
Tantos temas sensíveis preparam o terreno para que a dupla de atores possa apresentar atuações louváveis. Mina Andala se destaca pela sutileza dos olhares e pelas palavras não ditas, transmitindo a ideia de uma mulher que já enfrentou muitos problemas na vida. De sua parte, José Martins se entrega ao papel de tal maneira que nos convence de sua luta contra as limitações físicas e intelectuais da idade. Não é à toa que ele foi o vencedor do prêmio de melhor ator no Festival Internacional de Cinema de Shanghai, na China.
O único preço que a variedade temática cobra é a falta de profundidade em algumas questões. No contexto geral, falta uma crítica social mais incisiva acerca da discriminação racial. No âmbito pessoal, a relação conturbada de Arménio com os filhos — especialmente entre ele e a filha, com quem não fala — poderia ter sido mais explorada, visto que seus traumas e preconceitos também afetam o relacionamento familiar.
A Memória do Cheiro das Coisas acerta ao abordar o envelhecimento e a fragilidade da condição humana de forma sensível e respeitosa, ainda que os demais temas merecessem igual atenção. De um modo ou de outro, o filme é uma boa amostra das marcas que as lembranças deixam em nossas vidas, tanto as que fazem bem quanto as que causam mal.
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