Doctor Who 5×2: A História e o Motor

[SPOILERS A SEGUIR] Quem nunca sentou na mesa de um bar, no banco de uma praça ou na cadeira de um barbeiro e compartilhou casos divertidos e emocionantes? Esse grande poder da oralidade é o tema central de A História e o Motor, quinto episódio do segundo ano de Doctor Who na Era Disney. Com uma narrativa repleta de simbolismos, o escritor nigeriano Inua Ellams entra para o time de roteiristas da série trazendo uma trama que homenageia a cultura africana.
Depois que a TARDIS pousa em Lagos, na Nigéria, o Doutor (Ncuti Gatwa) decide visitar a barbearia de seu velho amigo Omo (Sule Rimi). Chegando lá, ele percebe que a loja está sendo controlada por outra pessoa, um sujeito que se intitula O Barbeiro (Ariyon Bakare). Esse homem, na verdade, aprisionou Omo e outros clientes na barbearia para alimentar – através de suas histórias – o motor de uma aranha mecânica que os levará até o Nexus, uma espécie de rede neural que contém todas os relatos e memórias, inclusive sobre os deuses. O plano do Barbeiro é excluir esses dados e, assim, se vingar de todas as divindades apagando sua existência.
Antes de mais nada, A História e o Motor é um episódio focado na etnia do Doutor. O fato de ele ter regenerado na pele de um homem negro já rendeu discussões como no revoltante Dot and Bubble (S1E5), porém esta é a primeira vez que vemos o que o próprio Time Lord pensa sobre isso. Enquanto se abre com Belinda (Varada Sethu), ele confessa que, dentre todos os lugares que visitou, é ali em Lagos onde ele se sente verdadeiramente aceito por seus semelhantes.
Inua Ellams é o escritor certo para criar essa atmosfera banhada em cultura africana, onde ele sustenta o roteiro nas vestimentas, músicas e folclore locais. Até mesmo as histórias que servem como combustível para o motor têm raízes no seu país de origem, pois Ellams já escreveu um livro chamado Crônicas da Barbearia (Barber Shop Chronicles) que serviu de inspiração para o episódio, além de um conto prelúdio sobre como o Doutor e Omo se conheceram.
O visual e os cenários ricos em cores nos remetem a outras produções que já enalteceram o povo africano de forma significativa, como Pantera Negra (2018). E talvez tenha sido essa similaridade com a obra da Marvel – aliado ao fato de que tanto o estúdio quando Doctor Who agora estão na Disney – que possibilitou que o Doutor brincasse com os filmes e séries do MCU e ainda tirasse sarro do Thor.
Outro ponto que fica bem estabelecido é a presença cada vez maior de divindades e seres sobrenaturais nesta nova Era do programa, tomando o espaço dos inimigos clássicos do Doutor. Além dos vilões do Panteão, o Senhor do Tempo afirma que já esteve na presença de deuses de diversas mitologias em diversos contextos diferentes.
Um dessas divindades é Anansi que, segundo o mito, é comumente representado como uma aranha (coincidência? Acho que não!). Dentro da barbearia, o Doutor encontra a filha desse ser, Abby (Michelle Asante), a qual nutre um profundo ressentimento depois de ter sido abandonada pelo Time Lord quando ele ainda era a Doutora Fugitiva (Jo Martin, de Fugitive of The Judoon) que aparece rapidamente em uma participação especial. Como geralmente tudo se conecta no final da temporada, pode ser que ainda a vejamos em ação outra vez.
Já esse detalhe de dar poder ao sobrenatural através das histórias é algo que também encontramos na literatura brasileira, como podemos ler em Fios de Prata, do escritor Raphael Draccon. Assim como o livro, A História e o Motor mostra a força que os relatos passados boca-a-boca têm e compreendemos que eles literalmente dão vida a seres mitológicos alimentando a crendice e a superstição. Sem essas lembranças, essas criaturas simplesmente deixariam de existir e isso traria graves consequências principalmente para a humanidade.
Contudo, a história mais tocante do episódio não é sobre as aventuras do Senhor do Tempo contra entidades sobrenaturais, Daleks ou Anjos Lamentadores, mas sim sobre uma humana comum: Belinda Chandra. O relato sobre o altruísmo de uma enfermeira que abre mão de passar um dia especial com sua família para cuidar de uma estranha pode parecer simples, mas mostra o quanto algumas pessoas são capazes de gestos como esse todos os dias e muitas vezes ninguém fica sabendo.
As outras narrativas fundamentais para o desfecho são a de Abby e do Doutor. A dela é repleta de significados sobre a cultura africana: o penteado que revela o caminho até o coração do motor ganha um simbolismo de peso para expressar a identidade de um povo. Já a dele resume em seis palavras as muitas vidas de um Senhor do Tempo: “Eu nasci. Eu morri. Eu nasci.” Essa história sem fim fornece tanta energia que o motor sobrecarrega e ameaça matar a todos na barbearia e o Barbeiro enfim desiste do seu plano.
É justamente essa conclusão o ponto fraco do roteiro de Inua Ellams. Apesar de sempre ser emocionante quando a série mostra as outras regenerações das Eras Moderna e Clássica, apelar para a longevidade e as memórias do Doutor não é algo inédito. Isso já foi feito em The Rings of Akhaten (S7E8) para saturar o deus parasita daquele mundo. Aliás, derrotar o vilão sobrecarregando-o também já aconteceu na atual temporada com Lux (S2E2) absorvendo a luz do Sol. O outro problema é a ausência de uma ameaça real e um vilão mais marcante. Ao final, fica a sensação de que as coisas se resolveram fácil demais.
Ainda assim, A História e o Motor é um acerto por diversos motivos, tanto por inserir um escritor nigeriano na equipe de roteiristas de Doctor Who quanto por humanizar o Doutor ao tratar de sua etnia de forma tão sensível, além de trazer questões que são pertinentes a todo um povo. Sem contar que as histórias renovam suas forças a cada vez que seguem a tradição de serem transmitidas oralmente, independente de onde você as ouça ou conte.
Ficha técnica:
- Episódio: 5×2 – Doctor Who: A História e o Motor (The Story and The Engine)
- Data de exibição: 10 de abril de 2025
- Roteiro: Inua Ellams
- Direção: Makalla McPherson
- Duração: 47 min.
- Elenco: Ncuti Gtwa (Doutor), Varada Sethu (Belinda Chandra), Sule Rimi (Omo Esosa), Michelle Asante (Abby), Ariyon Bakare (O Barbeiro), entre outros.
Assista ao trailer:
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