Tijolômetro – Hell’s Paradise (1ª Temporada)

Hell’s Paradise não é apenas mais um anime de ação com cenários exóticos e personagens carismáticos — embora tenha ambos em abundância. É, sobretudo, uma história que começa com a busca pela vida eterna e se transforma numa reflexão intensa sobre o que significa viver. Com um cenário tão hipnótico quanto letal e uma construção narrativa que inverte expectativas, a série provoca, fascina e, por vezes, até confunde. A primeira temporada entrega uma quest visual e filosófica em igual medida, embora tropece ao tentar abarcar personagens demais em tão pouco tempo.
Baseado no mangá homônimo de Yuji Kaku, Hell’s Paradise, ou Jigokuraku no original em japonês, foi adaptado pelo renomado estúdio MAPPA, conhecido por obras de peso como Attack on Titan: The Final Season e Jujutsu Kaisen. A história nos leva ao Japão do período Edo, sob o rígido sistema do xogunato, onde criminosos condenados à morte recebem uma última chance: explorar uma ilha misteriosa em busca do Elixir da Vida. A missão, supervisionada pelos executores do clã Yamada Asaemon, coloca assassinos e samurais lado a lado em um terreno que mistura o paraíso visual com o inferno existencial. A série estreou em 2023 e foi dirigida por Kaori Makita, com roteiro de Akira Kindaichi, ambos conseguindo traduzir com competência o material original para o formato audiovisual.
Tecnicamente, a animação é um deleite. MAPPA demonstra mais uma vez sua excelência ao entregar batalhas incrivelmente coreografadas e dinâmicas. Cada confronto é desenhado com fluidez, cores vivas e uma noção de peso que amplifica o impacto emocional e físico dos combates. As criaturas da ilha — entre o grotesco e o divino — são visualmente fascinantes, e a ambientação mística, com suas flores em profusão e estruturas inspiradas no budismo e taoismo, cria um contraste poderoso com a violência gráfica que permeia a jornada dos protagonistas. A trilha sonora também merece destaque, reforçando o tom dramático e ritualístico da história.
O grande tema da série, a busca pelo Elixir da Vida, ecoa mitos antigos como a busca pelo Santo Graal. Mas ao invés de cavaleiros cristãos, temos assassinos e espadachins em busca de algo igualmente inalcançável. A ilha representa uma versão distorcida do Éden, onde o paraíso é uma armadilha e a promessa de salvação se revela uma mentira. A filosofia da obra é embasada no Taoísmo e outras doutrinas orientais, explorando conceitos como o “Ki” (energia vital), a dualidade entre Yin e Yang e o equilíbrio entre forças opostas. O anime propõe a reflexão sobre se há vida sem morte, se a perfeição não é a ausência de falhas, mas o reconhecimento da impermanência. Esses temas elevam a narrativa a outro patamar, onde cada luta também é um embate interno.
Há ainda diversas curiosidades sobre a obra que aprofundam sua riqueza. O clã Yamada Asaemon realmente existiu no Japão feudal, sendo formado por espadachins a serviço do xogunato que atuavam como algozes — especialistas em execuções precisas. A figura dos ninjas renegados como Gabimaru também é historicamente plausível, pois muitos shinobis se tornavam mercenários ou eram caçados por abandonar seus clãs. A ambientação histórica confere à obra um senso de verossimilhança, mesmo em meio a tanta fantasia. Além de Tatsuki Fujimoto (autor de Chainsaw Man), o que talvez explique o gosto por protagonistas moralmente ambíguos e o uso criativo da violência como expressão simbólica.
O coração de Hell’s Paradise, no entanto, está nos personagens. Gabimaru, o ninja que se acredita vazio, vai gradualmente se revelando como o mais humano de todos, em sua negação e redescoberta de sentimentos. Sagiri, por sua vez, cresce como figura central da narrativa ao desafiar não apenas os padrões sociais de seu tempo, mas também sua própria compreensão do dever e da compaixão. A relação entre os dois é uma das âncoras da história. Os demais personagens — criminosos, executores e habitantes da ilha — oferecem perspectivas únicas, embora nem todos tenham tempo suficiente para se desenvolver plenamente. Isso se torna um problema: a série introduz tantos nomes, rostos e passados que, em certo ponto, o foco se dilui, e o espectador só deseja voltar a acompanhar Gabimaru antes que a temporada acabe.
Curiosamente, enquanto começamos a obra intrigados com o mistério da ilha, terminamos a temporada com novas dúvidas sobre Gabimaru. Sua amnésia parcial, sua esposa enigmática, seu passado obscuro — tudo isso se torna o novo mistério. E isso funciona. Hell’s Paradise consegue reverter o foco da curiosidade do ambiente para o personagem, mantendo o espectador interessado mesmo quando a ilha começa a se tornar mais compreensível. A sensação que fica, contudo, é de algo inacabado. A missão principal continua inconclusa, e a série termina sem grandes respostas — o que frustra um pouco, mas também promete uma continuação potencialmente explosiva.
A segunda temporada já foi confirmada e, com sorte, trará as resoluções que a primeira apenas insinuou. O público poderá continuar acompanhando a jornada de Gabimaru e Sagiri, esperando que os segredos da ilha e do ninja sejam enfim revelados. Enquanto isso, a primeira temporada de “Hell’s Paradise” está disponível na Crunchyroll, com legendas e dublagem em português. É uma experiência recomendada para quem gosta de ação brutal, reflexão filosófica e personagens que carregam o peso da existência em cada golpe desferido. O paraíso, afinal, pode estar no inferno — e vice-versa.
Assista ao trailer: