Mesmo antes do lançamento de Jogo Perigoso pela Netflix, 2017 já era o ano das adaptações de Stephen King. Com novas adaptações e remakes de suas obras, o Mestre do Terror ganha cada vez mais contornos de um mito moderno vivo na cultura pop. Esse ano já tivemos A Torre Negra, It: A Coisa (remake) nos cinemas, e pela Netflix tivemos a série O Nevoeiro, que adapta o conto que também já tinha ganhado um filme em 2007. King realmente é o autor mais adaptado para o cinema e TV, contabilizando quase 70 produções entre filmes, séries e mini-séries. Porém poucos são os filmes que conseguem realmente captar a essência de suas histórias no processo da adaptação. King é conhecido como o Mestre do Terror justamente por saber entrar na mente humana e mexer com o que ela mais tem medo, sem que haja necessariamente algo acontecendo fisicamente para que o horror aconteça. Jogo Perigoso consegue captar exatamente essa essência do autor, trazendo um suspense psicológico bruto, dentro de um contexto de sobrevivência. Abordando abusos e repressões misóginas dentro dos acontecimentos do presente e passado da personagem Jess (Carla Gugino).
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Jess e seu marido Gerald (Bruce Greenwood) vão para uma casa no lago afastada para tentarem salvar o seu casamento; eles haviam combinado que ela tentaria viver as fantasias sexuais dele e assim voltarem a apimentar a relação. Gerald algema Jess na cama, para simular algo mais real para sua fantasia, mas o momento dá errado e, durante a discussão, Gerald tem um ataque cardíaco e morre. Jess então fica presa na cama sozinha e não há ninguém nas redondezas para escutar seus pedidos de socorro. As coisas pioram quando um cachorro faminto entra no quarto atraído pelo cheiro de sangue de Gerald. Presa, sozinha, desidratada e abalada psicologicamente, Jess começa a ter alucinações de sua consciência e percebe que as “algemas” de sua vida foram colocadas muito antes daquele dia.
Jogo Perigoso adapta o livro homônimo de King lançado em 1992, com algumas leves mudanças, mas percebemos que o terror psicológico característico das obras do autor está muito presente neste filme. Apesar de viver uma experiência de sobrevivência, a protagonista é atormentada por sua própria mente e lembranças, que se personificam nas figuras do marido e dela própria. Cada um representando o pessimismo e o otimismo; a castração e a libertação. Cada uma dessas figuras trazem à tona toda a complexidade interna da personagem, trazendo contornos misóginos à repressão que ela sofria e causava a si mesma. Até o conceito da premissa inicial da trama (ela se dispor a viver as fantasias sexuais do marido para salvar o seu casamento) já demonstrava essa ideia interna de que a mulher é sempre a culpada de um casamento falido. Ao confrontar seu próprio psicológico em uma situação extrema, Jess levanta os fantasmas de seu passado, e percebemos de onde esse estigma surgiu: O abuso sexual e psicológico na sua infância causados pelo próprio pai (interpretado por Henry Thomas, o eterno Elliot de E.T. O Extraterrestre).
Dirigido por Mike Flanagan, Jogo Perigoso consegue construir todo o clima de tensão que a trama exige, com bons e dramáticos diálogos muito bem entregues por Gugino, Greenwood e Thomas, conseguindo ampliar a história muito além do simples cômodo em que Jess está presa. Com os diálogos como o do “suporte de vida”, a narrativa do filme mostra muito bem a questão principal da trama: a misoginia e repressão à mulher. E como que isso pode acontecer de variadas formas e tornar-se um ciclo que aprisiona a vítima se a mesma não se impor em algum momento da vida. Há casos que a própria mulher absorve tal discurso e, ao invés de vítima, passa a se achar culpada, presa em seus próprios traumas. Numa clara alegoria às próprias algemas que prendem Jess à cama.
Como numa grande sessão de análise, a personagem tem seus “insights” conversando com sua própria consciência, e somos levados à origem de sua personalidade quebrada: o eclipse solar em sua infância, na casa do lago em Maine. E observamos, numa sequência incômoda, o abuso não só sexual, mas também psicológico que sofre de seu pai. E entendemos como isso afetou para sempre a vida da personagem, que reprimiu todo o seu sofrimento para o fundo de um poço escuro. Nesse momento percebemos como o terror pode acontecer de diversas maneiras, mas Stephen King se diferencia justamente por saber entrar na mente dos personagens e do próprio leitor, e Flanagan conseguiu brilhantemente replicar isso em sua adaptação.
A tensão está sempre presente, tanto nos diálogos quanto na ameaça do cachorro (à la Cujo) que a espreita enquanto se alimenta de Gerald. Mas também há uma figura quase exotérica que surge, o homem do luar, trazendo uma conotação um tanto mística à história (que no final se desfaz). Mesmo sem apelar para os famosos e barulhentos “jump scares” (apesar de ter uma cena capaz de te fazer saltar), o filme consegue impor o verdadeiro terror no espectador com coisas simples, como apenas olhar uma parede no quarto escuro, ou na própria cena da mão (impossível não desviar o olhar nessa). Tudo isso mostra que para fazer um terror bem feito não é necessário ter alguma carnificina, ou figuras e entidades bizarras. Pois o causador do verdadeiro mal é o ser humano, mesmo que apenas um. E Stephen King sabe disso. Uma excelente adaptação do Mestre do Terror.
Jogo Perigoso é um filme surpreendentemente bom, contando com boas atuações de seu elenco e seu diretor. Produção esta que pode ser uma brisa revigorante à Netflix, depois de recentes fracassos em produções próprias, como vimos na série O Nevoeiro e no filme Death Note. Esse ano ainda teremos o filme 1922, mais uma adaptação de um conto de Stephen King no canal de serviço streaming. Definitivamente 2017 é o ano de King nas telas de todos os tamanhos.