À primeira vista, os aspectos cotidianos da vida podem parecer monótonos — especialmente quando entramos no modo automático, cada vez mais presente na sociedade contemporânea. Na literatura, porém, há um gênero textual que nos convida a olhar com mais atenção e sensibilidade: a crônica. É nele que autores com percepção aguçada demonstram como é possível enxergar além do comum e refletir, com lirismo e crítica, sobre a vida. Esse é o caso de Uma trilha sonora possível, de Letícia W. Magalhães.
Na obra, a escritora reúne textos curtos, sensíveis e bem-humorados que transformam cenas do dia a dia em matéria literária. Dividido em quatro partes — que abordam desde o ofício da escrita até afetos, memórias e vivências marcadas pela pandemia —, o livro combina linguagem acessível, riqueza poética e uma variedade expressiva de referências culturais.
Um dos destaques está na seção “o ofício de escrever, língua materna”, em que Letícia explora os sentidos das palavras ao longo do tempo. Em Sem vergonha, por exemplo, disseca o termo “vergonha”, costurando referências históricas (como a carta de Pero Vaz de Caminha) e musicais com a citação de um trecho de Maior Abandonado, do Barão Vermelho e Cazuza. Já em Manda nudes, o título subverte expectativas já que Letícia conduz o texto para uma reflexão sobre tons de esmalte e a simbologia do “nude” como “cor de pele”, criticando padrões e ironizando uma fala machista com sugestões inventivas de nomes para esmaltes. O humor se intensifica com outras menções musicais a Tim Maia, Raça Negra e Só Pra Contrariar.
Na segunda parte, “o ar que eu respiro, pandemia”, destacam-se a sensibilidade e a criatividade com que temas difíceis são abordados. Em Vincos e Réquiem em quatro estações, Letícia trata do luto, da passagem do tempo e da saudade. Em A antinamoradeira, observa a solidão na velhice com delicadeza, construindo uma imagem potente através da figura de uma boneca de janela — e da pintura Retratos da América de Edward Hopper. Já Mas que bobagem, as rosas não falam utiliza o poema Sacred Emily, de Gertrude Stein, para refletir sobre o poder da linguagem e sua capacidade de ressignificar o mundo.
Na terceira seção, “o presente inventado, memória”, os textos mergulham na infância, no convívio familiar e nos laços afetivos. Em Amarás, uma cena com a filha e corações de galinha conduz à memória de um conto de Clarice Lispector. Já em Os peixinhos do Barigui, Letícia aborda o desapego com humor e sutileza, narrando a morte rápida de peixinhos de estimação e sua substituição por tatu-bolinhas de brinquedo. São histórias pequenas que revelam grandes percepções.
A última parte, “variações do mesmo tom, cartas de amor”, explora o lirismo e o afeto com ironia e delicadeza. Em Ora (direis) ouvir estrelas, a escritora mistura astrologia, sonetos de Bilac e relações humanas contemporâneas para questionar o que realmente está escrito nas estrelas — e no modo como nos lemos e nos afetamos.
Para quem deseja conhecer o olhar singular de Letícia W. Magalhães, Uma trilha sonora possível é um ótimo ponto de partida. Ao transformar o ordinário em poesia e encontrar beleza nos detalhes, a autora nos lembra que há sempre algo precioso escondido na rotina. Sua escrita, atenta e afetiva, nos convida a sair do modo automático — e a escutar, com mais presença, o mundo à nossa volta.
Adicione ‘Uma trilha sonora possível’ à sua biblioteca:
Conteúdo relacionado:
- Acompanhe Letícia W. Magalhães nas redes sociais
- Edward Hopper – o pintor da solidão, do isolamento
Fique por dentro das novidades!
Veja Também!