Mother!” (Mãe!), filme de 2017 dirigido por Darren Aronofsky (Cisne Negro e Noé) e estrelado por Jennifer Lawrence e Javier Barden, não se trata de uma história de fácil compreensão – aliás, ao contrário, é um filme difícil até mesmo de definir em que gênero cinematográfico se encaixa. Isto porque, embora o suspense prevaleça na narrativa, a história flerta muito de perto com o surreal, ao mesmo tempo em que se ancora numa concretude que chega a agredir o espectador. Enquanto alguns críticos e blogs especializados em cinema execraram o filme dirigido por Aronofsky, outros o aclamaram como o filme do ano. Uma das análises mais interessantes que vi até agora sobre “Mother!” foi no blog do Fernando Machado. Ele propôs que a sequência da narrativa estabelece um paralelo com a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse, levantando também uma crítica à interferência do homem na natureza; de fato, um ponto de vista interessante, recomendo que depois deem um pulo no blog dele. Mas, conhecendo a trajetória cinematográfica do Aronofsky, acredito que exista uma motivação psicológica mais complexa encadeando a trama principal, bem como as relações entre as personagens.

Em um olhar mais psicológico –  sem desconsiderar as referências bíblicas, porém de forma menos literal – tive a impressão de que este filme, falando de forma grotescamente sintética, retrata o processo de criação do artista, particularmente em seu apogeu, quando “dá à luz” à sua obra prima. Neste momento ele é Deus. A musa inspiradora é a mãe (Mãe!) do processo de criação; é por meio dela que a obra prima – “o filho”, fruto da inspiração – pode surgir. Mas fiquei com a sensação de que o artista/o criador retratado pelo roteiro e direção, embora sempre precise da inspiração/musa para trazer suas criações ao mundo, o faz porque, na realidade, o seu verdadeiro desejo é satisfazer uma necessidade egóica de ser amado, adorado como um Deus. Acredito que, na perspectiva do diretor, o artista, o criador, é sempre um narcisista; o que o move não é o amor que ele sente por algo ou alguém, mas a expectativa de ser amado, idolatrado – ainda que às custas de uma exposição extrema de seu mundo interno e de sacrifícios da vida pessoal.

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Embora quando colocado desta forma pareça uma mensagem simples de ser assimilada – partindo-se do pressuposto de que esta é uma possibilidade de interpretação dentre tantas outras plausíveis – a estruturação do roteiro e a condução da narrativa levam o espectador a um misto de incômodo e angústia, não num sentido positivo (o que já seria de se esperar de um filme de suspense psicológico), mas por exigir uma compreensão demasiado metafórica de uma trama que se desvela calcada numa concretude que não abre espaço para a dúvida. É como se os elementos simbólicos fossem tragados para uma realidade tão bizarra que beira o surreal, deixando, às vezes, um ar nonsense que não combina com a densidade dramática do roteiro. Na humilde opinião desta que subscreve, “Mother!”, como outros filmes dirigidos por Aronofsky, tinha potencial para ser um excelente drama que flerta com o suspense, desvelado em uma trama de elementos psicológicos dúbios. O resultado final, no entanto, ficou apenas pretensioso e apelativo; faltou, principalmente, espaço para a metáfora.

Bem, até aqui foi realizada uma análise do filme sem spoilers. Caso vc, caro leitor, não queira saber de detalhes sobre o filme, por favor, pare de ler por aqui!

“Mother!” – Uma Análise Psicológica

Bem, se você resolveu continuar lendo, saiba que daqui para frente, além de spoilers, haverá uma análise psicológica minuciosa das personagens, bem como a discussão de uma cena particularmente indigesta.

Logo no início da película, temos a informação de que a casa do poeta havia sido destruída; a casa havia pego fogo e vinha sendo restaurada pela atual mulher dele. Partindo-se de uma perspectiva psicológica, sabe-se que a casa, simbolicamente, representa o ego do sujeito. Aqui também cabe outra ressalva: simbolicamente, também é possível associar a paixão ao fogo, ao calor. Bem, a narrativa do roteiro leva-nos a compreender que a mulher do poeta o ama profundamente e o admira mais do que qualquer coisa no mundo; ela toma para si a tarefa de estruturar a casa onde Ele “foi criado” – mas não só isso, ela sente o “coração bater” (a vida pulsar?) através da estrutura da casa (ego) do poeta.

É como se, simbolicamente, ela apoiasse sua existência (seu próprio ego) no existir do outro; ela vive para o outro. Ver a casa ser estruturada, reparada, dá sentido à sua vida. Para a personagem, ela e ele são um, não há diferenciação. Amá-lo, é como amar a si mesma; trata-se de um amor que beira as raias da psicose.

Estabelecendo um paralelo com a Psicologia Junguiana, podemos compreender esta relação tomando os conceitos de “anima” e “animus“. De acordo com Jung, inconscientemente, todo homem carrega dentro de si a imagem de uma mulher ideal – a “anima” – assim como toda mulher carrega a imagem de um homem ideal – o “animus”; anima e animus, são, portanto, arquétipos.

Analisando-se mais detalhadamente o arquétipo da anima, pode-se afirmar que, como todo arquétipo, a anima apresenta um lado positivo e outro negativo em sua relação com o ego masculino. Em seu aspecto positivo, ela é capaz de inspirá-lo e sua capacidade intuitiva, muitas vezes superior à do homem, pode adverti-lo convenientemente (JUNG, 2008). Jung ainda aponta que as manifestações da anima em um homem são determinadas pela experiência dele com sua mãe pessoal. No entanto, ao longo da vida do homem, é necessário que a imagem da anima se separe da imago materna – o que me leva a pensar: será que isto de fato ocorreu com o poeta? Ou será que a sua mulher, inconscientemente, trata-se de um cabide em que cabe perfeitamente a projeção da imago de sua própria mãe? É, de fato, muito estranho esse amor quase incondicional que a esposa lhe dedica; remete-nos, inevitavelmente, à ideia do amor materno e ao próprio título do filme.

Também há que se ressaltar que, de acordo com Jung, quando encontramos na vida real alguém que comporte características similares àquelas presentes nas imagens de mulher ideal (anima) e de homem ideal (animus), tendemos, inconscientemente, a projetar estas imagens arquetípicas nestes sujeitos – daí surge a paixão. Posto isto, pode-se levantar a hipótese de que a esposa do poeta corresponde ao objeto de projeção de sua anima, assim como Ele, o poeta, corresponde ao objeto de projeção do animus da sua mulher. Daí advém a paixão que os une.

Mas não podemos esquecer de que ele é um artista, um poeta. Enquanto ela vive apenas focada no relacionamento e nas questões da vida cotidiana (resolvendo tudo que estiver a seu alcance a fim de deixar o seu marido mais feliz), a razão de existir do poeta é a sua arte, a sua criação. Ele é a obsessão dela; a arte – e a glória que advém do reconhecimento – é a obsessão dele.

Retomando a cena em que é apresentado o escritório do poeta, o setting onde ele se isola do mundo para criar as suas obras, ficamos sabendo pelo próprio, que, dos escombros que restaram do incêndio que assolou a casa, apenas uma coisa muito preciosa ele pôde salvar: um cristal raro, em forma de coração, um presente muito precioso dado por alguém especial –  fica explícito também que não foi um presente da sua atual esposa. O coração é um símbolo universal do amor; supomos portanto, que alguém, antes dela, o amou muito – tanto que lhe deu um presente único, de valor inestimável, o qual apenas ele podia acessar (a mais ninguém era permitido tocar no objeto). Quando o casal de hóspedes quebra o referido objeto, o poeta sai de si, fica totalmente enfurecido. Era a única lembrança da sua casa original (ego pueril?).

Aliás, falando do casal de hóspedes – interpretado com maestria por Ed Harris e Michele Pfeiffer – também é possível estabelecer um paralelo entre ambos e os arquétipos da Grande Mãe e do Pai, dois dos arquétipos mais importantes para o início do desenvolvimento humano e para o processo de formação do ego (simbolicamente, poder-se-ia identificar as figuras de Adão e Eva a estes arquétipos). É como se este casal de hóspedes representasse as imagos materna e paterna do poeta, com todo o poder simbólico a eles conferido – sendo a imago materna mais invasiva e forte do que a paterna. Na sequência, chegam os filhos do casal de hóspedes, rivais desde sempre. Segundo Boechat (2008), o motivo mítico dos irmãos rivais vem a ser um tema arquetípico que traduz  a dinâmica psíquica dos opostos, no processo de organização da consciência humana. O fato de um irmão matar o outro (tal qual Caim e Abel)  pode sugerir que os conflitos edípicos vivenciados não foram elaborados, gerando uma oposição entre ego e sombra.

Para Jung,  a sombra “é a parte negativa da personalidade, isto é, a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (2007b, p. 58). Em diversos momentos em sua obra, Jung pontua que, quanto maior a luz (a consciência), maior a escuridão (sombra). É interessante observar que, após o já citado assassinato de um dos irmãos, a mulher do poeta, intuitivamente, descobre no porão da casa uma porta secreta. Esta porta dá acesso a um túnel extremamente escuro, de onde sai um sapo. Chama atenção a falta de curiosidade da mulher em explorar esse túnel. Psicologicamente, o porão, sendo o cômodo mais inferior da casa, pode ser uma alegoria para o inconsciente; no caso, dentro do porão ainda havia um túnel secreto, que fora descoberto intuitivamente pela mulher: mas, ao invés de dar vazão à sua intuição e continuar explorando o túnel, a personagem simplesmente faz de conta que o mesmo não existe; É como se, inconscientemente, ela intuísse que havia algo profundamente sombrio a respeito daquela casa e de seu marido. Mas, talvez por medo de encarar a verdade, a mesma preferiu negar sua descoberta a fim de não macular a imagem do seu amado.

Agora, retomando a cena do velório, percebemos cada vez mais pessoas adentrando na casa para acompanhar o enterro do filho assassinado do casal intruso. Pessoas dos mais diversos tipos: algumas boas, prestativas; outras ruins, invasivas… Isto me remeteu à autonomia dos diversos complexos, que, segundo Jung, todos nós carregamos em nosso inconsciente. No entanto, a casa (ego) continuou sendo cada vez mais invadida por estranhos (complexos, conteúdos do inconsciente) e, quando a situação começou a sair do controle, a mulher (anima) é quem assumiu as rédeas e restaurou a ordem na casa (poder-se-ia dizer, ordem no psiquismo). E é neste momento em que há a conjunção carnal entre o marido e a esposa, representando o hierogasmos  e a coniunctio (ou seja o casamento sagrado, a união dos opostos). O papel simbólico da coniunctio é de representar o renascimento e a transformação através da união de opostos.

Desta união (coniunction) surge o filho; o filho representa o renascimento e a transformação do marido e mulher em “Pai” e “Mãe”. O filho também faz renascer no poeta a inspiração para a sua obra prima. Aliás, o dia da publicação da sua obra prima “coincidentemente” é o mesmo dia do nascimento do filho de ambos. É quando, mais do que nunca, a casa é invadida por pessoas estranhas, a casa fica cheia. Podemos supor aqui uma alegoria para a inflação egóica do poeta, que, agora novamente adorado por seus seguidores, identifica-se com esta imagem de Deus que os seus “fiéis” projetam sobre ele. Segundo Edinger, a inflação egóica trata-se “de um estágio no qual algo pequeno (o ego) atribui a si qualidades de algo mais amplo (o Si-mesmo) e, portanto, está além das próprias medidas.” O Si-mesmo (ou self) é o arquétipo que corresponde à totalidade da psique, assim como seu centro organizador. Seria como uma representação psíquica do Todo, e até mesmo do divino (Deus). Assim sendo, quando a horda incontrolável de fãs do poeta invade a casa, a esposa (representante da anima) se perde e quase é morta neste processo de endeusamento do poeta (inflação do ego), ao mesmo tempo em que a casa (ego) vai sendo destruída. No auge da histeria coletiva, ela entra em trabalho de parto, e, com a ajuda do marido, tem o filho de ambos – a obra prima dos dois.

Mas é aí que as coisas se complicam: o poeta (identificado com a imagem do Deus que seus seguidores projetam sobre ele), oferece seu único filho (sua maior obra) em sacrifício (tal qual Jesus Cristo) – o qual é esquartejado em um altar, e, literalmente, serve de alimento a seus fiéis. Simbolicamente, poderíamos compreender esta parte tão chocante do filme como uma metáfora para o processo de criação artístico: Uma vez apresentada para o público, a criação do artista não pertence mais a ele; ela será de domínio público, de todos que a apreenderem, a introjetarem. Ela continuará a alimentar a alma de todos que tiverem contato com ela, e, em cada alma, suscitará sensações diferentes; cada um terá uma interpretação e perspectiva diferente, independente da motivação do artista. A obra de arte tem um autor, mas não um dono; ela é de todos – assim como a casa do poeta. Mas a glória do apogeu tem seu preço: Talvez, para muitos artistas, o maior custo seja o sacrifício de uma vida pessoal mais sadia, mais “normal”; o sacrifício de um amor, e, não raramente, da maternidade e paternidade.

Retomando as cenas finais da película, o que resta à mulher/musa inspiradora/mãe quando o maior projeto de vida do casal é sacrificado pelo marido/artista/”Deus”? A morte da relação. O fogo da paixão, que um dia aqueceu os corações de ambos, se torna o fogo consumidor fora de controle do ódio: do ódio de amar e não ser amado; de nunca ser o suficiente para o outro; de sempre estar em segundo plano na vida do outro; de ser sacrificado pelos interesses egoístas, narcísicos do objeto de amor. É o apocalipse; o fim, a destruição.

E o que resta? A lembrança do amor, as memórias do ser amado que ficam cristalizadas para sempre e se tornam, então, objeto de inspiração para o artista (eis aí o simbolismo do coração de cristal). Isto, claro, até ele encontrar novamente uma musa inspiradora, donde resultará um novo processo de criação.

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