Se tem uma coisa que fascina todo Nerd é o chamado efeito Tarantino, que pode ser definido como o ato de reconhecer elementos de obras clássicas ao apreciar uma outra obra, sendo que a obra que está sendo apreciada não recai no problema do plágio, e é tão excelente quanto à predecessora que lhe emprestou elementos. Foi o caso, por exemplo, do imortal letreiro amarelo de Star Wars, extraído diretamente de Flash Gordon.

Os livros-jogos da série Aventuras Fantásticas (sobre a qual eu já tratei nesse texto aqui) são um prato cheio pra quem sente um barato com o efeito Tarantino. É comum os fãs associarem títulos como Guerreiro das Estradas a Mad Max, por exemplo, assim como é frequente a associação entre Robô Comando a Transformers e/ou os robôs da série Gundam. A Nave Espacial Traveller, por sua vez, foi a homenagem prestada por Steve Jackson a Star Trek, resgatando todos aqueles elementos fascinantes da série original (o teletransporte, as armas phaser, as naves, os dilemas com as espécies alienígenas). Inclusive, na dedicatória do livro, Steve Jackson deseja que todos os citados tenham uma “vida longa e próspera“.

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No entanto, apesar desse tributo a Star Trek ser evidente por si só, A Nave Espacial Traveller consegue ser uma obra dotada de originalidade por seu enredo desafiador e, principalmente, pelo fato de ser uma aventura em que o leitor/jogador é o herói, como é de lei em todas os livros da série Aventuras Fantásticas.

Publicado em 1983, A Nave Espacial Traveller foi 4º livro da série, sendo que este foi o primeiro título a enveredar pelo campo da ficção científica. Um mau-funcionamento nos motores de propulsão interestelar obriga você, o capitão da Traveller, a tomar medidas drásticas: fazer uma arriscada manobra usando o campo gravitacional de um buraco negro no intuito de reduzir a velocidade da nave na marra, à medida em que a nave se afasta dele. A manobra incialmente é bem-sucedida, mas a força do campo gravitacional é tão forte que arrasta a nave para o interior do buraco negro, fazendo-a atravessar uma passagem dimensional e emergir em um universo paralelo. O objetivo não poderia ser outro: encontrar as coordenadas corretas da passagem dimensional que o levará de volta ao seu próprio universo, o que, em termos técnicos, poderia ser traduzido como uma espécie de crossover entre Caverna do Dragão e Star Trek.

Como se sabe, a jogabilidade dos livros-jogos da série Fighting Fantasy se divide em duas dimensões: a primeira diz respeito às possibilidades de migrar de uma referência a outra em função das escolhas feitas pelo leitor/jogador, e a segunda dimensão corresponde à quantidade e à complexidade de situações como combates, testes de atributos e charadas, sendo ambas as dimensões determinantes para o andamento da trama.

No que diz respeito à primeira dimensão da jogabilidade, em relação às escolhas do leitor/jogador e à solução de dilemas, A Nave Espacial Traveller repetiu o mesmo padrão dos títulos anteriores: os números acima de cada fragmento de texto dão prosseguimento à aventura, e o leitor/jogador deve tomar as decisões e, em seguida, dirigir-se à referência que contém o fragmento de texto que corresponde àquela decisão. Foi um dos livros mais curtos da série, com apenas 340 referências para o andamento da aventura, e outras 3 contendo as regras para cada modalidade de combate: corpo-a-corpo, com uso de armas phaser e entre naves.

A segunda dimensão da jogabilidade, no entanto, teve modificações significativas, a começar pelo fato de que o leitor/jogador terá de zelar não só pelos próprios índices de Habilidade, Energia e Sorte, mas também pelos índices de Habilidade e Energia de outros 6 tripulantes, bem como pelos índices que dizem respeito à nave, que são o Poder de Fogo das Armas e, principalmente, Escudos. Tal carga de responsabilidades concomitantes cria uma imersão severa do leitor/jogador à aventura, o que contribui de sobremaneira para aumentar por si só a dificuldade diante das escolhas a serem feitas, como os planetas a serem visitados e quais membros da tripulação designar para integrar o grupo de desembarque. Uma escolha errada pode custar a vida de membros da tripulação, uma responsabilidade com a qual o capitão terá que arcar.

Se acontecer de algum tripulante morrer ou ficar incapacitado durante a aventura, o leitor/jogador deve determinar os índices de Energia do tripulante substituto, sendo que não será necessário jogar dados para determinar a Habilidade do novo tripulante. Considerando que o tripulante substituto não tem tanta prática e experiência no exercício das atribuições quanto o oficial perdido, a Habilidade do novo tripulante será sempre a Habilidade do tripulante perdido -3.

Sua tripulação é composta por um oficial de Ciências, que é um resolvedor de problemas; oficial de Medicina, responsável pela saúde da tripulação, e cujas habilidades podem ser usadas para restaurar seus índices de Energia e dos demais tripulantes; oficial de Engenharia, que cuida da mecânica da nave, e um oficial-chefe de Segurança, acompanhado de outros 2 oficiais de campo.

As regras para determinar dos índices de Habilidade, Energia e Sorte seguem o mesmo padrão: d + 6 para Habilidade e Sorte (que quase nunca é solicitada nesta aventura), e 2d + 12 para Energia. Os índices da nave, no entanto, são determinados por d + 6 para Poder de Fogo das Armas, e d + 12 para Escudos. Na falta de dados de 6 lados, tem a opção de abrir aleatoriamente uma página e adotar como resultado o valor dos dados desenhados ao pé da página, uma incrementação feita nas edições da Jambô que são uma mão na roda.

Os combates corpo a corpo seguem também as mesmas regras de títulos anteriores da série: 2d + o seu valor de Habilidade, 2d + a Habilidade do oponente, e o que obtiver maior Habilidade acertou o golpe, e a Energia do que foi golpeado deve ser reduzida em 2 pontos. Regras simples, eficientes e divertidas.

O ataque próprio de um combate entre phasers, por sua vez, é determinado rolando-se os dados e comparando o resultado com os respectivos índices de Habilidade. Neste combate, um disparo pode tanto causar um ferimento leve, de raspão, como também pode matar instantaneamente, consistindo, portanto, numa modalidade de combate muito delicada. O texto se encarregará de dar instruções sobre como determinar os danos causados pelos tiros sofridos, pois leva em consideração o ambiente em que se dá o confronto, o tamanho do oponente, etc.

O combate entre naves é o mais divertido, com certeza, apesar de ocorrerem em raríssimas ocasiões ao longo de toda a aventura. É também uma das modalidades de combate mais sutis, pois um tiro pode causar tanto um dano leve nos Escudos, quanto também pode fender o casco, comprometendo os sistemas de sustentação de vida da nave atingida. Uma vez atingida, é necessário determinar a extensão dos danos causados, o que se dá a partir da comparação entre os índices de Escudos e o resultado de um rolar de 2 dados.

As ilustrações não seguem o padrão hiper-realístico de outros títulos, como Mansão das Trevas e Calabouço da Morte, por exemplo. Houve quem reclamasse do fato de que algumas ilustrações pareciam quadros difusos de arte moderna, com linhas sinuosas, e contrastes de luz e sombra aparentemente desprovidas de sentido, mas todo esse psicodelismo das ilustrações me agradou, afinal é de alienígenas que estamos falando, e uma das formas mais eficientes de potencializar a imersão do espectador num universo alienígena é torcendo a linguagem e as formas visuais. Ouso dizer que algumas lembram um bocado aquele festival de formas e cores das cenas finais de 2001: Uma Odisséia No Espaço.

Os planetas e demais sistemas estelares a serem visitados são os mais diversos. Uns oferecem apenas perigos, não contribuindo em nada para o sucesso da missão; outros possuem pistas que levam à passagem dimensional errada, e, por fim, há os sistemas nos quais o jogador encontra o único caminho correto. Ao longo da aventura, o leitor/jogador se depara com estações espaciais, planetas pós-apocalípticos, naves de guerra, planetas hiper-avançados tecnologicamente, e outros que remontam à Idade Média da Terra.

Dificilmente se consegue zerar o livro na primeira tentativa, mas não é impossível. A tentativa-e-erro é talvez a única maneira encontrar os sistemas que oferecem as coordenadas corretas, e essas idas e vindas, na maioria das vezes mal-sucedidas, podem ser um tanto enfadonhas, mas o ânimo pra mergulhar de cabeça na aventura se dá mediante o desafio a ser vencido, temperado com inúmeras referências a elementos clássicos de Star Trek. Pra quem é fã, é uma aventura que vale por si só.

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