Nos últimos anos a personagem Arlequina teve uma ascensão vertiginosa no conhecimento geral. Curioso pensar que uma personagem secundária da animação do Batman 1992 se tornaria uma das personagens mais populares da DC Comics, a ponto de se tornar carro-chefe das produções cinematográficas. Certamente foi o filme do Esquadrão Suicida que alavancou esse sucesso e, mesmo com o relativo fracasso do mesmo, a personagem se tornou um fenômeno. Era mais do que natural esperar que ela ganhasse um longa próprio para capitalizar em cima desse sucesso. 

Após terminar seu relacionamento com Coringa, Arlequina começa a sua jornada de tentar construir uma vida própria. Mas seu passado não a deixa em paz e logo ela se vê nas mãos de um perigoso criminoso e numa corrida contra o tempo, mercenários e outros personagens de Gotham.

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O grande problema desse filme é que ele quer ser absolutamente tudo ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo em que tenta falar de forma séria sobre masculinidade tóxica, relacionamentos abusivos e feminismo, ele também não quer ser levado a sério com um humor cartunesco propositalmente exagerado e que atira para todos os lados. Acredito que a raiz do problema está no roteiro assinado por Christina Hodson, que tem roteiros interessantes em Bumblebee e Paixão Obsessiva. Mas, infelizmente, aqui ela encontra dificuldades em fazer com que essa história comporte todos os tons, temas e estilos possíveis.

Um dos mecanismos mais óbvios é colocar a Arlequina falando diretamente com o espectador e recortando as cenas num estilo tarantinesco. Talvez isso funcionasse se a protagonista tivesse falas verdadeiramente engraçadas. O grande problema do humor envolvendo Arlequina é que ele só se pauta em uma única coisa: contraste. Tudo se baseia na contradição dela ser fofa/sexy VS psicótico-violenta. A partir do momento em que se entende isso é possível prever quase todas as piadas e momentos cômicos do filme.  É triste perceber que uma atriz tão incrivelmente talentosa como Margot Robbie dá o máximo de si para interpretar essa personagem, mas até agora não tivemos um roteiro que não a tratasse como um compilado de postagens de adolescentes no Tumblr.

As outras personagens que compõem as Aves de Rapina possuem uma consistência interessante que tragicamente se perde no clímax. Neste momento o filme parece abandonar completamente qualquer caracterização e todas começam a se comportar de forma parecida com Arlequina. Figuras que até então eram sérias, e funcionavam como contraste em relação a protagonista, se tornam versões de Arlequina. A única personagem que mantém sua identidade é a Caçadora, mas o problema é que não existe motivo nenhum para sua existência nessa história. Parece que essa personagem está nesse filme só porque a mesma geralmente configura a formação das Aves de Rapina nos quadrinhos.

Mas talvez o cerne de toda a problemática esteja na essência de como a Arlequina é tratada nesses filmes. Em teoria temos que simpatizar e torcer por uma personagem que mutilou, torturou, matou e roubou uma série de pessoas. O pior de tudo é que este filme tenta colocá-la como uma espécie de vítima devido ao seu relacionamento com Coringa, mas em nenhum momento se dá conta de que ela também fez coisas tão terríveis quanto ele. É obvio que ela foi terrivelmente abusada pelo Coringa, mas o filme não é sério o suficiente para mostrar o quão terrível foi esse momento. Quase nenhum peso real é dado a esse relacionamento tóxico e por vezes o roteiro parece tratar como se fosse só um termino de namoro, que acaba sendo um desserviço para a temática feminista da história.  Na maior parte do tempo ela age como uma menina mimada que fica profundamente ofendida quando as pessoas que ela prejudicou se voltam contra ela, e o filme quer que você fique também. O longa quer que nós, como público, achemos que ela tem o direito de destruir a vida de qualquer um só porque ela é fofinha e usa roupas descoladas. E nós devemos aplaudir quando ela o faz.  

O que salva o filme é a ótima direção de Cathy Yan que consegue dar todo o estilo exagerado que o filme necessita além de ótimas cenas de ação. Espero que essa diretora tenha chance de dirigir mais longas nessa linha. Claramente ela tem talento para conduzir os atores em cenas e faz tomadas longas de lutas corpo a corpo, coisa que está cada vez mais difícil de achar nesse gênero.

Se você busca representatividade feminina nas adaptações de super heroínas nos cinemas, e na TV, acredito que Capitã Marvel e Mulher Maravilha ainda são obras melhores. Outro ótimo exemplo é a série de TV da Supergirl que muitas vezes é subestimada, mas que está anos luz a frente no que diz respeito a tocar em assuntos sérios de forma genuína.

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Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

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