“Rixas nunca são sobre ódio, elas são sobre dor”, explica a famosa lenda das telas Olivia de Havilland (interpretada por uma quase irreconhecível Catherine Zeta-Jones) a um diretor de documentário nos minutos iniciais de Feud. E é sobre essa rixa fundamentada em dores, mágoas, ambição e injustiça que a série de Ryan Murphy vai tratar, em detalhes perturbadores. A intensidade do conflito entre as atrizes lendárias Bette Davis e Joan Crawford é explorada de forma brilhante. A série mostra tanta coragem e astúcia quanto as duas mulheres que estão no centro desse drama hollywoodiano.
“Feud – Bette and Joan” é a primeira temporada da série que vai mostrar alguma rivalidade famosa ao longo da história. Mas vamos nos ater à primeira temporada em que Susan Sarandon, perfeita interpretando Bette Davis, e Jessica Lange, profunda em sua Joan Crawford, mostram sua força e suas personalidades marcantes, enquanto tentam se manter em destaque na Hollywood dos anos 60.
Bette e Joan eram estrelas competitivas da indústria do cinema, mas além de sua competição algo as unia no início da década de 60. Ambas já não conseguiam bons papéis por serem consideradas “velhas” demais. Joan Crawford aos 57 anos e Bette Davis aos 54, só eram escaladas para papéis secundários de vovós ou velhinhas excêntricas (isso quando eram escaladas). Um problema que existe até hoje em Hollywood, uma atriz quando chega aos 30 anos vê as ofertas de bons papéis ou de protagonistas se reduzirem consideravelmente. Tanto Joan quanto Bette se revoltavam contra esse sistema, mas não podiam fazer muita coisa a respeito. Até que Crawford, descontente e ressentida com a falta de ofertas de trabalho e com a maneira que a indústria lhe tratou em seus anos dourados, parte para uma tentativa derradeira de fazer algo acontecer por si mesma. Ela pede a um velho amigo diretor, Robert Aldrich (Alfred Molina), que se junte a ela em uma aventura arriscada: adaptar um romance de suspense pouco conhecido chamado “O que terá acontecido a Baby Jane?” (What ever happened to Baby Jane?) em um filme de terror B, já que o suspense e o terror estavam em alta pelo lançamento de Psicose, de Alfred Hithcock.
O romance se trata da rivalidade e inimizade entre duas irmãs e Joan Crawford vê a oportunidade perfeita de explorar essa rivalidade das personagens com a da vida real, convidando Bette Davis para co-estrelar a produção junto com ela. Davis reluta, mas acaba aceitando pois seria uma forma de coloca-las no foco novamente. De fato, a iniciativa deu resultado. As colunas de fofocas do cinema e o público ficaram em polvorosa por saber que as duas inimigas mortais trabalhariam juntas.
Elas chegam a se dar bem nos bastidores, mas isso estragaria os planos do diretor da Warner, Jack Warner (Stanley Tucci) que exige que o diretor do filme, Robert Aldrich, instigue o ciúme entre elas para que as fofocas de bastidores continuem rendendo publicidade. Vemos aí a crueldade a que elas são submetidas. Até mesmo grandes estrelas que apresentam personalidades tão fortes, como Bette e Joan, podem virar joguetes nas mãos dos poderosos dos estúdios.
A série deixa claro o quanto Joan Crawford tinha uma profunda necessidade de aprovação de Bette e Jéssica Lange capta esse tom perfeitamente, mesclando altivez com insegurança. Ela queria que sua rival a validasse como boa atriz. Na juventude, Joan era mais apontada por sua beleza e não por sua atuação, já com Bette acontecia o contrário. Em determinado ponto da série, Bette pergunta a Joan como era ser a garota mais bonita do mundo, ao que Joan responde que era maravilhoso, mas nunca foi o suficiente, e devolve a pergunta, questionando Bette como era ser a melhor atriz, ao que Bette responde que era incrível, mas também nunca foi o suficiente.
As atuações são impecáveis. Sarandon e Lange são lendas interpretando outras lendas. Lange como Joan retrata a complexidade de uma mulher consciente das regras e restrições da década em que está presa – enquanto dá vida a cenas e falas esmagadoras. Lange tem a habilidade de tornar a maldade gentil e por isso acabamos fisgados e torcendo por ela mesmo quando ela se mostra traiçoeira e maquiavélica.
Já Susan Sarandon está a cópia de Bette Davis, na aparência, nos trejeitos, no sotaque e no tom de voz. Uma das cenas memoráveis da série se dá quando ela apresenta sua caracterização como Baby Jane pela primeira vez no estúdio, apostando numa maquiagem carregada e infantilizada, algo que ela mesma criou com base na sua visão da personagem, pois segundo Bette, Baby Jane seria alguém que nunca tirou a maquiagem, apenas acrescentou uma camada em cima da outra, o que reflete também o que Hollywood é capaz de fazer com suas estrelas. A personalidade contundente de Bette Davis e sua tendência a não dar a mínima soam completamente naturais na interpretação de Susan. Ela também consegue ótimas cenas com a filha rebelde de Bette, BD (Kiernan Shipka) e seu colega de trabalho Victor (Dominic Burgess), que destaca a importância crescente da carreira de Davis na comunidade homossexual clandestina da época.
Feud também alcança histórias paralelas, como a da assistente de Bob Aldrich, Pauline (Alison Wright), que tem aspirações de dirigir um longa, mas vê suas iniciativas desmoralizadas e ridicularizadas por aqueles ao seu redor, até mesmo quando procura a ajuda de Joan e recebe uma resposta que é a síntese de como funciona a indústria do cinema quando se trata de mulheres. Vemos um discurso totalmente sexista por parte de Crawford, que até nos choca partindo de uma mulher, mas ela apenas reproduz o que aprendeu e joga diante de Pauline a realidade nua e crua daquele meio.
Mas a série não é apenas sobre os bastidores da filmagem de Baby Jane, Ryan Murphy explora o que acontece após o filme e todos os momentos icônicos dessas duas atrizes estão lá – o lobby de Joan Crawford para que sua colega não ganhe o Oscar, as manipulações para que pudesse receber o prêmio da Academia representando alguma atriz que não comparecesse à cerimônia, Bette Davis procurando emprego em Hollywood através de um anúncio no jornal numa ânsia por não parar de trabalhar, chegando a gravar diversos pilotos que nunca foram aprovados, os relacionamentos amorosos de ambas e as relações conturbadas com suas filhas.
Isso merece uma menção à parte e um episódio inteiro dedicado a isso. No episódio “Mamãezinha Querida”, título em alusão à famosa autobiografia de Christine Crawford, filha adotiva de Joan, onde ela acusa a mãe de maus tratos e abuso físico e psicológico, inclusive revelando que a mãe batia nela com cabides de arame e a castigava obrigando-a a fazer serviços domésticos, algo que nunca se esperaria de uma mulher que queria tanto ser mãe que adotou cinco crianças. Nesse episódio, a forma com que Bette e Joan lidavam com a maternidade é dissecada. Ambas não tinham a maternidade como o alvo principal em suas vidas, mesmo assim há momentos reservados para observarmos Joan sentindo antecipadamente a dor do ninho vazio, mesmo que ela não fosse uma mãe exemplar, mas gostasse de transmitir essa imagem.
A série trata muito sobre sexismo, machismo e sobre como essas mulheres eram manipuladas pelos homens que a cercavam, mas de forma alguma é sobre militância feminista, apenas o retrato trágico de uma época e de uma indústria que explorava ao máximo a beleza e a fragilidade feminina. Mas não era um problema exclusivamente feminino – todos, de uma forma ou de outra, acabavam esmagados por suas ambições e por quem estava acima na “cadeia hierárquica”, como demonstram as cenas em que o famoso diretor Robert Aldrich é manipulado e humilhado pelo onipotente Jack Warner. Era preciso dançar conforme a música se o objetivo fosse o sucesso ou simplesmente conseguir trabalhar ou desenvolver bons projetos.
Por fim, Feud é não somente sobre a rixa de Bette Davis e Joan Crawford, mas sobre várias rixas e conflitos, pessoais, profissionais e familiares. É também sobre o preço da fama que milhares não se importam em pagar. A indústria cinematográfica é uma construtora de sonhos, mas no fim das contas é também um campo minado, cheio de perdas, para aqueles que mantém os sonhos vivos.
Feud – Bette and Joan
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Nota