Esse ano se comemora o aniversário de 100 anos da Revolução Russa e de 30 anos da franquia Street Fighter, e mesmo parecendo algo bem assimétrico um do outro, na verdade podemos fazer grandes paralelos entre os dois. Nós, do Tarja, vamos tentar fazer essa reflexão com informações nerds mescladas com um pouco de Historia, mas antes é necessário fazer um pequeno ponto conjuntural para ingressarmos nessa missão.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, com a derrota do nazi-fascismo europeu, o mundo se deparava com a bipolaridade política entre EUA e URSS, onde ambos buscavam a hegemonia internacional através da demonstração do poder, tanto desenvolvimentista, quanto científico e armamentista, mas sem conflitos diretos. Esse período ficou conhecido como “Guerra Fria” (1945-1991). A disputa não era apenas por influência territorial, mas sim a preponderância na disputa de ideias. Para isso, nos EUA se desenvolveram várias leis travestidas de um verniz democrático patriótico para criminalizar os adeptos de ideias marxistas e para estancar seu florescimento e capilarização na América. Essas medidas foram conhecidas como “Caças às Bruxas” ou Macartismo, período esse que influenciou a produção da indústria cinematográfica hollywoodiana em detrimento da propagação das ideias anticomunistas. Esse cabo de guerra ideológico não influenciou apenas as produções de filmes, mas também a produção na indústria dos games eletrônicos que, mesmo jovem, estava cada vez mais ganhando espaço no mercado.

A saga Street Fighter veio ao mundo com o seu primeiro jogo em 1987, produzido pela empresa Capcom, sendo considerado por muitos gamers como o pai dos jogos de luta tradicionais. Em 1991 a Capcom lança o segundo jogo da franquia, que também revolucionou os jogos de luta, tendo uma nova remodelagem gráfica muito impressionante para a época, trilha sonora marcante nas batalhas e novos personagens jogáveis com um pequeno enredo introdutório. E o personagem que nós vamos focar aqui é um lutador barbudo de moicano, musculoso, soviético, que foi inspirado no lutador de luta livre também soviético Victor Zangiev, que fez bastante sucesso no Japão durante o final da década de 80 e início da de 90. Seu nome é Zangief ou, como o mesmo gosta de se referir, Ciclone Vermelho. Mesmo sendo inspirado em um grande lutador, Zangief possuía uma jogabilidade bastante lenta e limitada, o personagem era grande e, portanto, era alvo fácil e complicado de desviar de golpes especiais. Era realmente um desafio tentar fechar o jogo usando apenas uma ficha com ele. É necessário ressaltar que as historias de cada personagem são modificadas a cada jogo, então vou apenas destacar as características que permaneceram durante os jogos.

Zangief foi um fisiculturista de prestígio (referência feita em suas poses e culto ao corpo musculoso) que com o tempo se interessou pelas artes marciais, desenvolvendo seu próprio estilo de luta, mesclando luta livre americana com o sambo russo. Ficou durante muito tempo no topo entre os melhores, sendo banido dos campeonatos por conta de sua extrema brutalidade. Depois de ser excluído dos campeonatos de luta livre do submundo da Rússia, Zangief deixou para trás a civilização a fim de treinar sua luta nas montanhas da Sibéria, onde praticava e brigava diariamente com os ursos, ganhando diversas cicatrizes em seu corpo (que podemos ver no vídeo introdutório do personagem no jogo Street Fighter IV). Depois de muitos dias de treino, um homem veio em sua procura e ofereceu uma proposta: “Zangief, você esta disposto a utilizar suas técnicas de luta livre da nossa Rússia para provar a nossa força ao mundo? Será que você pode ser a nova “perestroika”, recuperando nossa antiga reputação e força perante o mundo?” Com ajuda das palavras patriotas daquele homem, Zangief aceita a proposta.

Podemos perceber em todos os jogos que a personalidade mais marcante de Zangief, sem dúvidas, é o seu nacionalismo exacerbado que, na verdade, é uma estereotipação do soviético. Isso é utilizado como motivação principal nos primeiros jogos para que ele disputasse os torneios para difundir o seu estilo de luta e a cultura da “mãe Rússia” pelo mundo (a sua motivação tem um novo foco durante o Street Fighter IV, que se transformou em “levar a felicidade e alegria para as crianças da Rússia” com as suas vitorias no torneio mundial, dando a entender que as pessoas na Rússia não tinham muito que comemorar ou se alegrar). O contratante que o chamou para representar o seu país foi um homem chamado Erai Hito (na versão japonesa, que significa Grande Homem), que por sinal era bastante parecido com o dirigente da URSS Mikhail Gorbachev (no final do jogo faz uma dança tradicional russa com Zangief), o mesmo que tinha enfraquecido bastante o modelo econômico e político soviético com as medidas da Perestroika e a Glasnost durante a década de 80 até sua extinção, no início da década de 90. Mesmo com a aparência de durão o ciclone vermelho era bastante gentil e com um bom senso de humor.

Agora que já sabemos um pouco mais de nosso personagem em foco, vamos tentar fazer algumas observações de como a URSS era retratada no jogo através das fases do Zangief. Em sua primeira aparição no Street Fighter 2, a sua fase era nitidamente em uma indústria siderúrgica, com o símbolo discreto mas ainda visível da foice e o martelo no chão, placas e cartazes escritos em russo espalhados pela fase. Na placa branca está escrito “Запрещается смотретв детям” que significa: “é proibido que as crianças assistam” (que entra em contradição na transformação da motivação do próprio Zangief no jogo IV como já foi dito), o cartaz vermelho “Выход” significa: “saída” e o amarelo “Внимание”: “atenção” ou “cuidado”. Os espectadores eram os próprios trabalhadores da fábrica, mas chamo a atenção para esses trabalhadores no fundo (a cada versão do jogo tem algumas alterações): no plano superior se encontra um grupo de jovens sendo retratados com rebeldia desde a postura, cabelos longos e gestos obscenos, acredito que foi uma tentativa de representar a juventude da década de 80 na URSS que lutava contra o sistema por mais liberdade de expressão; no plano de baixo temos um trabalhador bebendo ao que parece ser uma bebida alcoólica, historicamente a URSS vinha lutando intensivamente contra a embriaguez e o alcoolismo, e na década de 80 a mesma tomou medidas cruciais para a causa, provocando uma espécie de “lei seca”. Em lugares públicos, a polícia detinha todos os cidadãos embriagados e enviava-os para centros de desintoxicação. A embriaguez era punível com multa de até 100 rublos (o salário, na época, era de 150 a 180 rublos). Dois meses de trabalho forçado ou pena de até 15 dias de prisão. Contudo, ao que parece, o trabalhador não demonstra se preocupar muito com isso e ao seu lado vemos mais dois personagens uniformizados, aparentando serem guardas, mas que se interessam mais na luta do que prender ou punir o que bebe.

No jogo Street Fighter Alpha 2 de 1996, o socialismo já tinha se dissolvido e já não era mais uma ameaça para o sistema capitalista, mas mesmo assim a Capcom retratou a URSS em seu jogo, a arena de batalha continua sendo em uma metalúrgica, rodeada por grades, aparentando uma prisão, porém, com um tom ainda nacionalista; contendo duas bandeiras, mas ambas discretas, não dando para ver os símbolos completamente, entretanto dando a entender que ainda são a foice e o martelo. Ao fundo contém um telão verde com os seguintes dizeres “работать! работать! служащий.” que significa: “Trabalhe! Trabalhe! Servo”.

Em Street Fighter Alpha 3 mais uma vez a URSS foi retratada, mas, dessa vez, de uma maneira mais apagada e desgastada: sem nenhum espectador, com o símbolo comunista quase que imperceptível no chão e uma bandeira aparentando ser velha e encardida; dando a ideia de decadência e atraso.

Finalmente chegamos ao Street Fighter IV, onde foi o primeiro a não retratar mais a URSS, mas sim a Rússia. Agora pela primeira vez o cenário não iria ser dentro de uma fábrica, e sim pontos turísticos. O interessante é que o ponto turístico escolhido foi “Snowy rail yard” uma estação de trem nada alegre, na verdade é bastante depressiva e miserável, tendo a volta da retratação do alcoolismo e diversos espectadores usando o chapéu Ushanka soviético.

Para finalizar temos o último jogo, que saiu recentemente, Street Fighter V, onde a arena volta a ser em um local fechado, contendo algumas referências culturais e algumas outras não tão boas assim; o ringue ainda faz lembrar uma indústria rústica, compondo matrioskas (brinquedo artesanal e tradicional russo) que cercam o mesmo. Tem a representação de um urso que é um emblema nacional da Rússia, o problema é que esse mesmo urso possui uma coleira como se estivesse sido adestrado. Há outra referência, que pode se dizer, da máfia russa sendo representada por dois indivíduos mascarados, segurando cada um ao que parece ser uma AK-47. Os símbolos do regime nunca foram tão visíveis: possuem dois estandartes gigantescos que são o que mais chamam a atenção no cenário, mas modificaram o símbolo do comunismo que, em vez de ser uma foice e um martelo, mudaram para um martelo e três trigos.

Tudo é construído por um motivo e nada é feito por acaso, podemos ver que até um “simples cenário” de um jogo de luta possuí uma mensagem que está completamente ligada ao seu contexto histórico. Zanguief é um dos oito heróis tradicionais dos jogos da franquia, e que sempre deixaram bem claro que era um personagem do bem, mas em filmes ele é retratado sem explicação como vilão (ex: Detona Ralph e o filme live-action Street Fighter 2) que, por serem produções para o público americano, a transformação do personagem em antagonista foi puramente por ser russo e soviético.

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