Desde o momento conhecido como “O Descobrimento do Brasil” até os dias de hoje, o índio tem sido retratado de diferentes maneiras na ficção nacional. Os exemplos desse retrato são variados e podem ser encontrados tanto nos clássicos da literatura como nas histórias em quadrinhos produzidas de forma independente. Com este fato em mãos, torna-se oportuno revisitar algumas dessas produções e destacar o olhar de seus autores sobre o povo indígena.

Antes disso, vale mencionar que o dia de 19 de abril é conhecido como “O Dia do Índio“. A data escolhida remete a um período quando haviam muitos protestos dos povos indígenas do continente americano. Em 1940, ocorreu um congresso organizado no México que tinha como objetivo debater medidas para proteger os índios em seu território. No início, representantes indígenas se recusaram a participar, mas no dia 19 decidiram aparecer e tomar parte nas discussões. No Brasil, esta data só foi oficializada 3 anos depois já que inicialmente o nosso país não havia aderido às deliberações do congresso. Para saber mais, recomendo esta matéria da BBC News Brasil.

Um ponto importante sobre o simbolismo desta data é que, infelizmente, muitas pessoas se aproveitam do momento para reforçar estereótipos relacionados a figura do índio. Para combater isso, é sempre importante buscar informação e conhecimento. Dessa forma, abrirá um caminho para reflexão e mudança de atitude. É como diria o escritor indígena Daniel Munduruku em entrevista à BBC News Brasil: “A sugestão que eu sempre faço para escolas é que a gente possa deixar de usar o 19 de abril como uma data comemorativa. É uma data para a gente refletir. Deve gerar nas pessoas um desejo de conhecer, de entrar em contato com essa diversidade dos povos indígenas.”

No campo da ficção, há uma diversidade de literatura produzida ao longo dos anos que contribuiu ao seu modo nesse contato com o povo indígena. Inclusive, este tema já ganhou espaço no meio acadêmico como podemos ver no artigo “A presença indígena na ficção brasileira“, de Fernando Carvalho. Publicado na ITINERÁRIOS – Revista de Literatura, o texto faz um panorama histórico e profundo que se inicia desde os séculos XVII e XVIII quando o índio aparecia em registros históricos (cartas de Pero Vaz Caminha) até movimentos importantes da literatura como romantismo e modernismo.

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Como se trata de uma temática vasta e com suas complexidades, vou compartilhar neste artigo alguns exemplos pontuais como é o caso do clássico “O Guarani” de José de Alencar. Publicado pela primeira vez em 1857, o romance é considerado uma das principais obras da primeira fase do modernismo no Brasil. Segundo este artigo da Doutora em Estudos da Cultura Rebeca Fuks, a obra é considerada indianista. Ou seja, faz referência à idealização do indígena, que em muitas dessas obras fora retratado como um mítico herói nacional. Assim como em “Iracema“, a sua trama é mais voltada para a relação entre o índio e o “homem branco”. Uma última curiosidade é que o livro já teve duas adaptações para o cinema (1979 e 1996) e uma minissérie para tv (1991) além de uma ópera inspirada no romance. Atualmente, já pode ser lido na integra de forma gratuita por estar em domínio público.

Em 1928, chegou a vez de “Macunaíma” de Mario de Andrade. O romance modernista do escritor traz seu protagonista como um herói, mas não qualquer tipo de herói e sim um “sem nenhum caráter”. Neste clássico nacional, conhecemos a jornada deste personagem conhecido por ser preguiçoso e ardiloso. No livro, ele passa por diversas transformações durante a história enquanto prossegue em sua jornada em busca do amuleto muiraquitã que é a única lembrança de sua falecida amada Ci. No entanto, ele e seus irmãos precisam lidar com a ameaça de Venceslau Pietro Pietra, “o gigante Piamã comedor de gente”. Um detalhe importante sobre a obra é como seus personagens retratam características do povo brasileiro sejam essas boas ou ruins. Em 1969, o romance foi adaptado por Joaquim Pedro de Andrade e é um dos pioneiros do movimento cinematográfico conhecido como Cinema Novo. Também está em domínio público e disponível para leitura gratuita.

Agora saindo um pouco do campo dos clássicos da literatura nacional, que é bem vasto por sinal, vale a pena dar uma olhada no cenário independente das histórias em quadrinhos. Nesse sentido, um nome que merece ser citado é o de Eberton Ferreira cujo trabalho com quadrinhos autorais já teve citação em outro artigo recente desta coluna. Entre as suas HQs de diferentes estilos, estão duas que se encaixam perfeitamente na questão indígena: Causos #1 – O Demônio das Matas e Xamã – O Espírito da Terra. Para conhecer mais sobre seu trabalho, é recomendável ouvir o episódio 10 do podcast Nos Autores.

No primeiro volume da série Causos somos apresentados à uma história que se passa na época do Brasil colônia. Nesta aventura, vemos a união entre um jovem aventureiro português e um índio tupiniquim que tentam descobrir os mistérios que envolvem assassinatos ocorridos em tribos indígenas. Ambos acreditam que o assassino é uma criatura maligna apelidada por todos de “O Demônio das Matas”.

Em Xamã – O Espirito da Terra, conhecemos as aventuras de um índio misterioso com poderes mágicos que é um claro exemplo de personagem que se encaixa no estilo de super-herói. Xamã tem em seu corpo uma estrela de cinco pontas e um apanhador de sonhos, elementos que representam a sua relação entre luz e trevas além da capacidade de comunicação com o mundo dos espíritos. Ele também integra o grupo “Os Sete” onde vários heróis nacionais se unem para proteger a Floresta Amazônica de um mal terrível.

Outro exemplo de personagem heroico é Jaguara, uma heroína criada por Altemar Domingos da Silva. Em 2005, foi publicada pela Via Lettera a HQ Jaguara – Guerreira e Soberana com aventuras dela trabalhando tanto temas indígenas como folclóricos. É por isso que não é de se estranhar que em suas histórias ela encontra criaturas como Lobisomen e a Mula-sem-cabeça, entre outros. Assim como o Xamã, ela também participou de crossovers como é o caso da HQ  Alfa – A Primeira Ordem: Parte 1 que foi publicada via financiamento coletivo. Para saber mais sobre a criação da Jaguara, recomendo este vídeo do canal do Teta de Nerd na qual o autor fala sobre seu processo criativo:

Enfim, encerro por aqui esta viagem no tempo pelo histórico da representação do índio na literatura e nos quadrinhos com a certeza de que há muito mais a ser desvendado sobre o tema. De qualquer modo, espero que este artigo sirva como lembrete da importância de valorizarmos nossa cultura e suas representações do povo indígena.

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Olhar Literário é uma coluna escrita por Marcus Alencar. Marcus é redator no site Leituraverso e um dos hosts do podcast Leituracast

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Marcus Alencar

"Palavras importam! Uma morte, uma ondulação e a história mudará em um piscar de olhos"

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