Agatha Christie é uma das autoras mais prolíficas do último século e possui 152 créditos em diversas produções cinematográficas devido ao intenso interesse do audiovisual em adaptar suas obras literárias. Escreveu oitenta romances, uma dúzia de peças de teatro (uma delas sendo a que mais tempo ficou em cartaz na história), além de fazer parte da santíssima trindade do romance de detetive, junto com Edgar Allan Poe e Conan Doyle. Apesar de ter sido Poe que cunhou o termo “assassinato no quarto fechado”, foi Agatha que levou esse conceito a um novo nível. A ideia de uma história onde temos um detetive, um corpo e diversos suspeitos reunidos num local fechado é uma das estruturas narrativas mais clássicas e mais utilizadas  nas últimas décadas neste gênero. Assassinato no Expresso do Oriente é um de seus livros que mais sedimentou essa estrutura e é tido como um dos melhores da autora.

Hercule Poirot acaba de terminar um caso em Jerusalém e está ansioso para finalmente entrar de férias, mas quando pega uma carona no Expresso do Oriente ele acaba caindo num mistério curioso. Um homem em seu vagão é assassinado e assim se inicia uma investigação com os passageiros, pois certamente um deles é o assassino. Mas quem?

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O livro já foi adaptado para o cinema antes em 1974. Aqui temos a direção de Kenneth Branagh além de sua atuação como Hercule. Nos dois aspectos ele é excelente. Encarna com precisão o detetive que é meigo, carismático, com um TOC moderado, mas é pacato. Diferente do que está na moda, ele não é arrogante, irônico ou egocêntrico como a maioria dos protagonistas que vemos hoje, inclusive a maioria das encarnações de Sherlock Holmes. Sua direção é inventiva em nos fazer esquecer que esta é uma história que se passa num vagão de trem, driblando muito bem as faltas de locações. Faz uso também de takes longos que fazem a câmera passear pelos corredores e por cada suspeito. Toda a direção é feita para fazer com que o espectador se sinta como um intruso naquele trem, como uma criança que está fora da cama quando não deveria, mas com uma curiosidade mórbida de saber quem é o culpado.

O primeiro ato é muito bem humorado e cria uma pré-aventura para apresentar o protagonista no melhor estilo James Bond e Indiana Jones, no quesito estilo de narrativa. Isso pode dar a falsa sensação de que o filme vai ser uma série de piadinhas e tiradas espertas, mas isso é um engano. Quando o assassinato ocorre esse clima se perde completamente e caímos efetivamente num romance policial. A apresentação dos personagens, os suspeitos do caso, soa um tanto artificial e é até mesmo filmada de forma confusa, ou talvez seja um problema da montagem em colocar as coisas de forma natural.

Falando em coisas artificiais é importante salientar um aspecto estilístico deste filme que pode ser apontado por muitos como um defeito, mas acredito que não é. Nos livros de Agatha é relativamente comum que personagens estranhos entre si conversem de forma excessivamente expositiva.  Coisas como “Oi, eu sou o fulano e faço isso e aquilo como profissão”. O filme captura muito desse espírito, algo que pode soar muito estranho e artificial nesta mídia. Na verdade no filme, assim como no livro original, existem diversas falas e diálogos que possuem essa característica. O próprio Poirot faz longos discursos expositivos e expõe seus pensamentos em voz alta quando está completamente sozinho. É perfeitamente normal que esse aspecto seja apontado como algo ruim do filme; cabe a cada um decidir se vai permitir entrar nesse mundinho onde todos se comportam como personagens de um livro dos anos 30, ou não.

Tal estilo de diálogo e de personagens torna a atuação especialmente difícil. Como fazer um personagem caricato e arquetípico sem que isso fique bobo? Essa é a dificuldade da maioria dos atores neste filme. Enquanto uns se saem muito bem outros se saem mal. Como já disse, Kenneth incorporou um excelente Poirot.  Daisy Ridley é uma das que se sai bem e passa muita verdade em suas falas com Leslie Odom Jr, que se sai igualmente bem. Josh Gad, que ganhou muito destaque com LeFou no último Bela e a Fera, é um dos que se saem melhor e dá um show junto com Branagh. Johnny Depp não tem uma das participações mais longas, mas é bem ruim e, mais uma vez, fazendo uma versão de seus personagens anteriores, mesmo quando este nada tem haver com seus trabalhos anteriores. A icônica Michelle Pfeiffer também não está bem fazendo um papel bem caricato e deixando a bola cair nos momentos onde supostamente deveria brilhar. Willem Dafoe faz uma atuação automática que não compromete, mas que também não chama atenção, algo aceitável para o personagem que faz.

Em alguns poucos momentos é usado o recurso de um trem digital que fica bastante ruim. Algo que não deveria acontecer levando em conta que o símbolo do trem é um dos mais marcantes para está história. A adaptação deste roteiro faz leves mudanças, como colocar duas pequenas cenas de ação para fins cinematográficos, além de criar um embate ético e moral no clímax para estendê-lo e gerar um grande final. Se ele funciona ou não depende de você. Se você está com interesse de ver o filme e nunca leu o livro mantenha-se assim, pois a resolução do mistério vai te surpreender e quem sabe te fazer entender porque Agatha Christie faz parte da santíssima trindade. 


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Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

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