Transgressão e religiosidade sempre andaram lado a lado. Quando a crença estabelece limites há sempre a “tentação” de ultrapassá-los, e no catolicismo, religião em questão deste filme, a transgressão é justamente o combatido pecado. Com isto em mente, Beneddeta, o mais recente filme do histórico diretor Paul Verhoeven, transgride a base da doutrina católica em uma história baseada em fatos. Debatendo a fé, o milagre e o amor.
Toscana do século 17, Itália. Aos oito anos, a noviça Benedetta Carlini é trazida ao Convento Teatino da Mãe de Deus, em Pescia, como noiva de Jesus Cristo. Dezoito anos depois, a chegada de uma nova freira desperta novos sentimentos em Benedetta. Transgredir é algo que Paul Verhoeven está acostumado. Seus trabalhos em Robocop, Instinto Selvagem, Tropas Estelares, Vingador do Futuro, entre outros, dizem por si só. Criar sátiras transgressoras da realidade é a marca do diretor holandês, e só de seu nome estar envolvido com a sinopse acima já poderíamos criar boas expectativas.
Apesar de não termos o teor satírico tão alto em Beneddeta, Verhoeven brinca com a transgressão ao contrastar os desejos carnais da jovem freira com a sua santidade. Transgressões estas muito exploradas em situações sexuais bem explícitas, e altamente polêmicas. Inclusive Jesus é imaginado pela protagonista como seu esposo, sempre disposto a protegê-la em um tom quase sempre feroz. Verhoeven também não deixa de fora a igreja de sua acidez. Neste ponto Beneddeta apresenta uma instituição católica repressora e altamente gananciosa.
Tais transgressões não são extrapolações baratas. Elas acabam por desenvolver questionamentos do senso comum e à cerca de jargões do mundo católico como as freiras serem “as noivas de cristo”; como podem funcionar alguns “milagres” – Deus age através de atos de seus “protegidos”? – entre outras questões. Porém Beneddeta sempre deixa uma dúvida sobre a veracidade dos acontecimentos, até por se tratar de uma história real.
Benedetta Carlini foi uma freira católica mística e lésbica, que viveu na Itália na época da Contra-Reforma. Ela inspirou diversas obras ao longo do tempo que debatiam sua espiritualidade. A escritora Judith C. Brown já narrou sua vida no livro Atos impuros (1986), que discutiu os acontecimentos que levaram à sua importância arquivística para os historiadores da espiritualidade das mulheres. E o longa explora bem a relação de Beneddeta com Bartolomea, retratando exatamente a intensidade e a “ilicitude” de tal paixão. E aqui entra também o debate sobre o amor e lesbianismo, com sua própria “transgressão”. As atrizes Virgínia Efira (Beneddeta) e Daphne Patakia (Bartolomea) estão muito bem em seus papéis que exigiram não só o drama como também a exposição de seus corpos. Charlotte Rampling também faz um trabalho digno de nota como a madre Felicita.
Por fim fica o questionamento se os eventos fantásticos ocorridos no filme foram realmente obras de milagres de Beneddeta ou foram apenas coincidências que fizeram sentido na cabeça delirante da protagonista. E este questinamento é justamente o que define a dicotomia entre “Fé vs. Ceticismo“. E como é aliciante e incomodativo pensar sobre todos esses debates através das transgressões do senso comum impostas pelo longa. Beneddeta é suco Paul Verhoeven.
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Beneddeta (2021)
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