Naquele longínquo ano de 1982, Blade Runner – O Caçador de Andróides chegava aos cinemas do mundo todo, contando a saga dos Replicantes em sua busca por “respostas”, inspirado no livro Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, de Phillip K. Dick, que, curiosamente, veio a falecer naquele mesmo ano de 1982. A adaptação cinematográfica da obra, no entanto, foi mal recebida pelo público e pela crítica à época, e acredito que isso se deu por duas razões em especial.

A primeira delas é que a “pegada” dos filmes de ficção científica/fantasia da época era outra. Tínhamos space operas como Star Wars, os longa-metragens de Star Trek, e, situados naquele contexto de Guerra Fria, grande parte da produção de ficção científica era voltada para o espaço sideral. Foi então que apareceu Blade Runner, com sua Los Angeles do ano 2019, uma metrópole suja, escura, chuvosa, e bombardeada de campanhas publicitárias por todos os lados, mostrando que o nosso habitat pode ser um lugar tão hostil quanto o espaço sideral mais inóspito, quebrando muitas expectativas.

A segunda razão é, provavelmente, o ritmo do filme. Ao narrar passo a passo a investigação de Deckard atrás do grupo de Replicantes foragidos, ambientada numa atmosfera noir e com diálogos que exigiam uma atenção maior para serem compreendidos, o filme adquiriu uma narrativa densa e complexa (que, anos mais tarde, se tornou um de seus charmes), e esse tipo de narrativa desagradou de sobremaneira aqueles que esperavam sequências de ação de tirar o fôlego, com perseguições e tiroteios de laser (Michael Bay feelings…).

Como explicar, então, que um filme rejeitado pela crítica e pelo público à época de seu lançamento se tornasse, anos mais tarde, não só um clássico da ficção científica mas também um clássico da Sétima Arte, a ponto de justificar uma continuação 35 anos depois?

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À medida que foram sendo lançadas as várias versões de Blade Runner (versão original, do diretor, com voice over, sem voice over, etc), começou a se criar uma “mística” em torno do filme, pois cada versão interferia diretamente na trama, rendendo novos pontos de vista e finais alternativos que geraram debates, como o famoso happy ending em que Deckard e Rachel protagonizam o casal feliz em uma estrada livre e arborizada, sendo que este happy ending deixou o diretor Ridley Scott fulo da vida (mexe com o ego dele, vai!).

Porém, o aspecto mais significativo dessa “mística” de Blade Runner, digamos assim, é o fato de que as questões humanas presentes na trama (a diferença entre realidade e ilusão, a luta contra o tempo e a morte, etc) estão simbionticamente ligados aos personagens que as encarnam e à trilha sonora, conferindo aos mesmos uma carga dramática tão profunda que dificilmente se vê em outros filmes, bastando lembrar do diálogo entre Rachel e Deckard sobre a “artificalidade” da coruja, a natureza benéfica/maléfica da tecnologia na vida humana, e, principalmente, das “lágrimas na chuva” de Roy Batty e da eterna contenda entre os fãs sobre se Rick Deckard é ou não um Replicante. Todos esses elementos ganharam mais vivacidade ainda com a trilha sonora de Vangelis, que funciona tão organicamente com o filme que é praticamente impossível pensar aquela trilha sonora sendo usada em outro filme que não Blade Runner. Assim, sustento que, se o original de 1982 se tornou o clássico cult que é hoje, deve-se em grande parte à dimensão dramática de seus personagens em conjunto com sua trilha sonora.

Foi então que, anos mais tarde, o surpreendente diretor canadense Denis Villeneuve foi anunciado para dirigir Blade Runner 2049, o que gerou uma série de reações negativas que podem ser resumidas na sentença “clássico é clássico e não deve ser mexido”. Quando foi anunciado o primeiro trailer do filme (que você pode conferir aqui), pôde-se ter uma noção melhor de qual era a proposta do diretor, e a primeira dessas certezas era a de que o filme seria uma continuação direta do de 1982.

O fato de ser declaradamente uma continuação é de sobremodo significativo porque gerou uma série de dúvidas. Como fazer com que o novo filme não fique à sombra do “irmão mais velho” e tenha a sua própria importância? O que aconteceu com a Tyrell Corp. depois da rebelião dos Nexus 6? Quem designar para a dura tarefa de conceber uma trilha sonora que funcione o mais próximo possível da trilha original? E, principalmente, será que o filme vai tomar partido sobre se Deckard é um Replicante ou não? É exatamente diante de dificuldades cabeludas como essas que um bom diretor faz toda a diferença, porque ele sabe que tem que agir com sensibilidade para prestar um bom tributo ao original, agradando ao público mais “experiente” que viu o filme à época, e ao público que não conhece o Blade Runner de 1982. Dentre as estratégias adotadas pelo diretor para alcançar tais objetivos, estão a expansão daquele universo distópico da Los Angeles de 2019; uma certa reformulação na própria brigada especial de polícia dos Blade Runners; a preservação da ambiguidade nos diálogos, deixando em aberto as questões da “mística” do filme original; e, por fim, o uso do plot-twist, um quesito em que o diretor tem demonstrado muita competência desde o magistral A Chegada (confira a crítica aqui).

Mas, indo diretamente aos fatos, o filme narra a história de K. (Ryan Gosling), um Blade Runner designado para aposentar um replicante e, durante a missão, faz uma descoberta cujo desfecho pode colocar em xeque a ordem estabelecida. Até aí, nada de novo, né? Mas vamos aprofundar um pouco mais.

Como eu disse anteriormente, um dos êxitos de Villeneuve foi expandir do universo do filme original, e esse primeiro ato serve pra apresentar esse universo. Com uma fotografia muito boa, Villeneuve ambientou o filme tanto em metrópoles urbanas caóticas quanto em laboratórios genéticos hiper-esterilizados, mostrando não só o cotidiano daquele universo expandido como também trazendo à cena a nova mega-corporação responsável pela fabricação dos Replicantes, comandada por Niander Wallace (Jared Letto). Ao contrário de Tyrell, que era um homem mais voltado para os negócios, Wallace é um personagem dúbio, cheio de dúvidas sobre suas criações, e, principalmente, que vê nelas uma promessa para o futuro da humanidade, adquirindo um tom messiânico que confere grande parte da carga dramática do personagem. Com este papel, Jared Letto conseguiu se redimir de qualquer crítica relacionada ao seu Coringa em Esquadrão Suicida (confira o TarjaCast sobre Esquadrão Suicida aqui).

Apesar de parecer estar sempre com a mesma cara inexpressiva, Ryan Gosling funciona na pele do blade runner K., agindo em grande parte como o catalisador da narrativa, afinal é ele que conduz a investigação. Há, no entanto, uma diferença entre os Blade Runners novos e os de outrora, e essa diferença de gerações é um elemento que ganha importância sobretudo quando se dá o aguardado encontro entre Deckard e K. A presença de Harrison Ford é ímpar, trazendo novamente o personagem solitário, nada sóbrio, porém inteligentemente precavido contra qualquer um que possa querer se meter a seguir seus rastros.

Os elementos e as questões humanas do filme clássico estão profundamente presentes em Blade Runner 2049, compondo um fan-service bacana de se ver (e de lembrar), mas, como já foi dito, Villeneuve agrega questões novas que fazem a obra ter o seu próprio espaço, sendo que a mais surpreendente delas foi a do papel da tecnologia na vida humana, questão muito bem encarnada pela inteligência artificial JOI (Ana de Armas). Ao mesmo tempo em que assume as funções domésticas da casa inteligente de K., JOI potencializa as emoções dele e suas angústias relacionadas ao isolamento, por exemplo, o que é um debate super atual, sobretudo se lembrarmos dos famosos hikikomori, em que milhões de jovens japoneses, diante das pressões sociais mais diversas, optam pelo isolamento total adotando a tecnologia como distração. A relação entre K. e JOI lembra em dados momentos o filme Her, estrelado por Joaquim Phoenix.

Devo dizer que o saldo do filme foi bastante positivo, mas tenho que fazer as devidas ressalvas… A primeira delas é que senti falta de ver um bom e velho teste Voight-Kampff em cena, e a segunda é que, mesmo sendo fã incondicional de Hans Zimmer, fiquei com a impressão de que a trilha não funcionou tão organicamente quanto a de VangelisHans Zimmer adotou a mesma estratégia de Michael Giacchino ao compôr a trilha de Rogue One (confira nosso TarjaCast sobre Rogue One aqui): usou elementos e frases musicais da trilha clássica e incrementou recursos novos. Em filmes predominantemente de ação, como Anjos e Demônios, Maré Vermelha, Batman e Man Of Steel, por exemplo, a presença das percussões é um recurso que ajuda a ditar as sequências de ação, sendo que Blade Runner 2049 é um filme majoritariamente investigativo, truncado e emotivo, o que exigiria uma trilha mais próxima dos sintetizadores e teclados do que das percussões, propriamente. Posso estar sendo injusto com Hans Zimmer, mas acho que Vangelis fez um trabalho sonoro tão único, tão simbiôntico com o filme original que é difícil estabelecer parâmetros de comparação.

Depois de atestar sua competência no manejo de filmes do gênero ficção científica em A Chegada, Denis Villeneuve conseguiu fazer de Blade Runner 2049 um filme que não vai “se perder no tempo como lágrimas na chuva”, pois conseguiu ir além de prestar um bom tributo ao filme clássico, apresentando novos personagens dramaticamente carismáticos, ao mesmo tempo em que presenteia o fã com menções e aparições dos personagens antigos, sem, no entanto, macular a aura desses personagens, preservando a ambiguidade das questões da “mística” do filme original, sendo a mais importante delas a questão sobre se Deckard é um Replicante ou não. Assim, o filme novo repaginou o universo e as questões filosóficas do filme clássico, tem uma boa trama, ótimas atuações, mas pecou no quesito trilha sonora, infelizmente (que pena, Hans Zimmer…).

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