Com o sucesso de La La Land o musical começou a voltar aos olhares populares. De modo geral é muito comum que a maioria das pessoas que já gostam de cinema tenderem a não ter muito interesse neste estilo. Eu consigo entender isto, afinal é complicado estar acompanhado uma história e no meio do nada todos começam a cantar de forma sincronizada, voltando a normalidade logo em seguida, como se nada tivesse acontecido. O musical faz uso de uma licença poética e uma espécie de suspensão de realidade interna do filme onde o conteúdo musical é utilizada para compor a trama. De modo geral, não é “simplesmente  uma música” e sim uma transição de humor do personagem ou até mesmo virada de roteiro. Em vários outros filmes vemos outros tipos  dessa suspensão de realidade interna na trama, como por exemplo, quando Deadpool quebra a quarta parede e, de certa forma, sabe que está num filme.

Mas agora o que é metalinguística? Bem vamos a uma explicação rápida.

Metalinguística é quando uma mensagem se concentra no próprio código. Eu por exemplo. Estou usando palavras para explicar o significado de uma palavra. Um dicionário é um exemplo clássico. Um livro, repleto de palavras, que explica palavras. Um bom exemplo nerd é o autor Scott McCloud que escreve quadrinhos ensinando a fazer quadrinhos. Suas duas HQ’s mais famosas são “Desvendando Quadrinhos” e “Desenhando Quadrinhos” e são os exemplos mais visuais e práticos de metalinguagem. Até mesmo uma pintura de alguém fazendo uma pintura já é um bom exemplo.

Agora mais uma explicação antes de partimos para o filme. De tempos em tempos Hollywood é assolada por um gênero que faz muito sucesso. Hoje vivemos a moda dos filmes de super heróis como nos anos 80 tiveram o auge dos filmes de ação e anteriormente a febre do velho oeste. Mas antes disso tudo, logo que o cinema obteve som, o musical tomou o cinema. Isso pode parecer curioso para os olhares de hoje, mas naquela época onde o acesso à informação era muito mais limitado, ver um musical era algo sensacional, ia-se ao cinema para assistir uma história e ao mesmo tempo ouvir música. O musical era o gênero mais relevante, e movimentava toda a indústria. Certamente você já ouviu o termo “filme b”. Tal termo era utilizado para se referir a filmes de ficção cientifica ou terror, enquanto o “filme a” era justamente os romances e musicais (que também tinham muitos elementos de comédia).

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Agora que eu já disse tudo isso, podemos ir para “Cantando na Chuva” (desculpa a demora, mas as explicações foram necessárias). Aposto que você já deve ter visto um pedaço, ou escutado o refrão da música que dá nome ao filme. A cena icônica de Gene Kelly se segurando no poste durante uma chuva torrencial. Talvez esse momento tenha ficado tão marcado por ser o exemplo máximo da felicidade genuína. Um homem que canta em plenos pulmões, completamente encharcado, enquanto dança como uma criança brincalhona. Cena tão importante que é tão famosa quanto Luke e Vader, Johnny abrindo a porta no Iluminado e o grito de Psicose. Aliás uma curiosidade: nesta cena da chuva, foi misturado leite a água para torná-la mais densa e dessa forma mais cinematográfica.

Mas por que esse filme é tão marcante para a história do cinema como um todo?

Sinopse: Don Lockwood é um ator muito famoso no cinema mudo que sempre contracena com a atriz igualmente famosa Lina, uma mulher insuportável que deseja se casar com Don para alavancar sua publicidade. No auge do sucesso dos dois surge a tecnologia para captar áudio, e assim nasce o cinema falado. Inicia-se uma grande revolução na mídia onde os dois precisam se adaptar, enquanto Don se apaixona por uma atriz iniciante.

Existe uma série de motivos. Neste texto irei me focar na metalinguagem, que por sua vez possui algumas camadas. Vamos a elas passo a passo.

  1. Um filme que fala sobre a produção de um filme.
  2. Um musical que fala sobre o surgimento dos musicais.
  3. Atores interpretando atores que por sua vez interpretam seus personagens.
  4. Uma série de outros filmes dentro do filme que estamos assistindo.

Esse último ponto talvez seja o mais sensacional. Dentro de Cantando na Chuva vemos uma série de outros filmes. Em alguns deles apenas recorte de cenas, enquanto outros vemos enormes números musicais, a ponto de toda uma nova história ser contada dentro do filme. O plot é justamente sobre produção de filmes, e, por isto, vemos ao longo das cenas diversas técnicas clássicas usadas pelo cinema dos anos 20 e 30. O cenário de Cantando na Chuva é justamente o “por traz das câmeras”.

Agora sobre o musical em si. A qualidade das músicas cantadas é absurda. Além do, já icônico, “Cantando na Chuva”, temos diversos outros números musicais e nenhum deles é ordinário. Danças inacreditáveis, sapateado fora do normal e tudo conectado com a temática. Um bom exemplo: o personagem de Donald é o melhor amigo do protagonista, funcionando como alívio cômico (talvez o melhor da história do cinema) e justamente por ter essa função na trama ele faz um número musical sobre a comédia.

Gene Kelly além de ser o protagonista, também dirige o filme em conjunto de Stanley Donen (que também dirigiu Cinderela em Paris). O roteiro fica por conta de Betty Comden, que já fez uma série de trilhas sonoras (como a do excelente Profissional), e Adolphe Green. Ambos trabalharam juntos muito mais no ramo das trilhas sonoras do que no roteiro em si, mas como estamos falando de um musical, o roteiro e a trilha sonora viram uma coisa só praticamente.

Assistir Cantando na Chuva é como receber uma dose concentrada da história do cinema como um todo. Inclusive o primeiro filme com som, citado no próprio Cantando na Chuva, realmente existiu. “Um Cantor de Jazz” foi o primeiro a sincronizar vozes gravadas com cenas. Outra lição interessante, logo no inicio é uma amostra de como o cinema era visto pelo grande público. Don está conversando com uma atriz iniciante e ela lhe diz que “Os verdadeiros atores estão no teatro”. Isso mostra como nos anos 20 o cinema ainda competia com as performances ao vivo nos palcos e como o mesmo cinema era visto como algo menos artístico, apesar da popularidade.  Quando a capacidade de captar som chega, é mostrado a dificuldade dos diretores de se adaptarem à nova tecnologia e como isso modificou os esquemas de filmagem e da própria atuação.

Voltando a metalinguística. Conforme a produção vai caminhando, essa função de linguagem vai ganhando cada vez mais camadas, nos fazendo entrar em filmes dentro de filmes até o auge da última cena, onde vemos um cartaz que dá o toque final neste recurso que Cantando na Chuva usou durante todas as cenas. Não direi exatamente o que está no cartaz, pois estragará um dos finais mais inteligentes que já vi. Ao ver o filme com todos os elementos em mente talvez você entenda o grande valor desta obra para o cinema como um todo.

Mesmo que alguém veja totalmente desavisado, provavelmente irá gostar deste grande clássico do cinema por alguns motivos:  uma ótima história aliada com cenas musicais que te deixarão de boca aberta devido à qualidade das coreografias. “Cantando na Chuva” é um desses filmes que todo mundo deveria ver pelo menos uma vez na vida. Ele tem um “Q” de fábula moderna, além de gerar músicas que te fazem cantarolar depois que os créditos sobem, afinal de contas, esse é o maior musical de todos os tempos.

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Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

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