Sempre que Martin Scorcese anuncia um novo filme enche-nos de expectativas, pois é quase sinônimo de termos uma produção de extrema qualidade, tocando em assuntos sérios e densos. “Silêncio” não foge a essa regra, e cumpre as expectativas de ser um bom filme. Inspirado no livro de Shusaku Endo de 1966 que fala sobre a perseguição que missionários católicos sofriam no Japão no século 16, Scorcese debate não só sobre fé, como também toda a ideologia expansionista religiosa, porém deixa de contemplar contextos políticos da época. Deixando um debate muito mais espiritual e filosófico do que necessariamente histórico e político da situação, e isso não é um defeito. “Silêncio” traz uma boa reflexão ao espectador, que é instigado por argumentos de ambos os lados a ter conclusões próprias deste filme.

Em 1640, dois padres jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), partem em uma jornada para o Japão no intuito de encontrarem seu antigo mentor, agora dito apóstata, Cristóvão Ferreira (Liam Neeson). Porém, lá eles enfrentarão uma violenta e incessante perseguição religiosa dos budistas contra os cristãos, lideradas por Inoue-sama. Rodrigues e Garupe chegam ao Japão e percebem uma boa quantidade de camponeses cristãos, e começam assim a catequizar pelas aldeias vizinhas e obter informações do paradeiro de Ferreira.

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A fotografia e a ambientação da época são sensacionais. Parece que estamos naquele Japão feudal, duro e enlamado que conhecemos pelas leituras e histórias. Assim como também vemos a candura de seu povo, sua cultura e a violência que era comum na época. Camponeses simples, que prestam contas para seu daimyo de tudo, até de seus próprios pensamentos e crenças. A intolerância religiosa é o foco do drama, porém ela não é mostrada unilateralmente. Os debates são desenvolvidos na cabeça do espectador durante toda a duração do filme, que pode ser cansativo pela sua longa duração, porém é uma jornada recompensadora.

Os camponeses são constantemente vigiados e inqueridos sobre qualquer indício de crença cristã, e, se por acaso confirmado, são torturados e mortos, pendurados em cruzes, queimados vivos, ou afogados. Apesar de todos os riscos, Ichizo (Yoshi Oida) e Mokichi (Shinya Tsukamoto) abrigam os padres para que Deus possa falar diretamente com a aldeia e enfim se sentirem recompensados com uma vida no “paraíso” após tanto sofrimento em suas vidas carnais. Porém Inoue-sama e seus homens, após tantos anos de perseguição aos cristãos, se tornaram perseguidores implacáveis. Destruindo corpo, alma e o espírito de seus perseguidos e torturados.

“Silêncio” flerta com várias questões durante suas longas 2 horas e 40 minutos de duração. Conseguindo desenvolver boas reflexões através do protagonista, brilhantemente interpretado por Garfield. A primeira boa questão é a relação entre Fé e Dúvida. Dois sentimentos altamente contrastante, mas que, na minha relés opinião, são dependentes. É propagado que quem tem fé é aquele que não tem dúvidas, aquele que acredita cegamente em uma possibilidade ou crença. Pois bem, em “Silêncio” percebemos que a dúvida se passa na cabeça de qualquer pessoa, inclusive a de padres. Quando só há uma possibilidade à sua frente, você não tem opção. É aquilo ou é aquilo mesmo. Não há outro caminho em que você possa depositar a sua fé. Porém, quando optamos em acreditar na possibilidade remota, seja ela a esperança ou não, ao invés das dúvidas que a rodeiam, isso sim é o verdadeiro ato de fé. E percebemos isso nos pensamentos de Rodrigues durante o longa-metragem, um homem que deposita sua esperança em Deus, quando tudo, até seus próprios pensamentos recomenda o contrário.

O ato de nos colocarmos no lugar de outrem, chamado de empatia, não é uma atitude muito comum de se fazer. Mas somos incitados a exercitar esta empatia em alguns momentos do filme. Principalmente quando nos é mostrado a situação no ponto de vista dos japoneses, vendo suas terras sendo invadidas por forasteiros que querem doutrinar seu povo. E essa é uma outra boa questão abordada em “Silêncio”: a arrogância. De um modo mais frio de ver as coisas, a situação pode ser traduzida em como os jesuítas estão invadindo outras terras, desprezando os costumes, cultura e religião que há nela para que espalhe o evangelho, cumprindo seu dever e garantindo seu próprio lugar aos céus.

Os senhores japoneses, à priore, são colocados como vilões. Líderes que matam e torturam pessoas inocentes, devido sua crença. Porém isto também é debatido no filme. Não que assassinos e torturadores sejam pessoas boas, longe disso. Mas “Silêncio” no faz pensar no outro lado da moeda, já que tantas pessoas inocentes estão sofrendo e morrendo pela cristandade. Morrer como cristo é uma honra para algumas destas pessoas, porém assistir outras pessoas morrerem é uma honra igual? Saber que o preço de sua glória como jesuíta não é a sua própria crucificação, mas sim o sofrimento de seus inocentes seguidores faz-nos pensar se há vilões em ambos os lados nessa história.

O objetivo dos jesuítas é evangelizar o máximo de pessoas possíveis, enfrentando os desafios desse caminho prometendo felicidade e abundância para os fiéis, se não conseguidas aqui, em vida, conseguidas no paraíso. Para os líderes japoneses a doutrina cristã pode ter valor na Espanha e Portugal, mas não tem uso e nem valor no Japão. Os sacerdotes estudaram-na para avaliar seu significado. E de forma prática concluíram que é um perigo. Um homem é incitado a vencer as ilusões no budismo, enquanto que o homem é incitado a acreditar em ilusões no cristianismo. Mas Rodrigues diz que trouxe a verdade, e a verdade é universal, não se limita a fronteira de países. Um pensamento mais espiritual do que prático, como de costume. Um debate interessante que o filme traz.

Assim como também o personagem Kichijiro, um japonês que negara sua cristandade no passado e pisara na imagem santa, carregando assim a culpa e dor de não ter sido queimado junto de sua família. Kichijiro é um personagem que sempre traz comparações à tona. Seja conosco; com seu conhecido; ou com qualquer pessoa que falha, mas que busca refúgio no perdão prometido por sua crença. 

Em alguns momentos do filme cabe a comparação o caminho do padre Rodrigues com o caminho de Jesus. Pronto para dar a vida por sua crença, um mártir. Porém ao se deparar com problemas que ultrapassam sua própria vida, ver seus seguidores e amigos serem mortos e torturados, dificulta a ideia inicial de mártir, transformando-o no causador de tantas desgraças. Ele não pode fazer nenhum milagre, ele está sozinho. Deus pode estar com ele, sofrendo com ele, mas silencia-se diante de tais acontecimentos e das perguntas nas orações de Rodrigues. O silêncio é a única resposta conseguida. O silêncio divino, o único silêncio que é capaz de julgar. Silêncio que dá título à produção. 

Enfim, um filme duro que ultrapassa as barreiras do entretenimento. Não necessariamente é o longa-metragem que que queiramos ver, mas sim o que precisamos ver.

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Daniel Gustavo

O destino é inexorável.

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