Após 5 séries na Disney+ de personagens pré-existentes no MCU, a Marvel lança sua primeira série na plataforma de um personagem integralmente apresentado fora das telonas com o Cavaleiro da Lua. Contando com 6 episódios e com a sempre digna atuação de Oscar Isaac, a série do avatar de Khonshu consegue explorar nuances muito interessantes da psiquê do personagem, além de criar e estabelecer relações e vínculos de forma competente, mesmo pecando nas cenas com mais cara de Marvel da produção.
Cavaleiro da Lua acompanha Steven Grant, um gentil e educado funcionário de uma loja de souvenir, que é atormentado com apagões e memórias de outra vida. Steven descobre que tem transtorno dissociativo de personalidade e divide o corpo com o mercenário Marc Spector. À medida que os inimigos de Steven/Marc se voltam para eles, ambos devem navegar em suas complexas identidades enquanto mergulham em um mistério mortal entre os poderosos deuses do Egito.
A série é um claro exemplo de uma obra de personagem, onde praticamente todos os acontecimentos da produção são focados no desenvolvimento do protagonista e nas suas relações (que aqui é com ele próprio), mas que, por outro lado, relega alguns elementos da trama para um segundo ou até terceiro patamar. Cavaleiro da Lua começa em seus primeiros episódios com uma narrativa diferente, explorando o transtorno de personalidade múltipla de Marc/Steven.
O TDP (Transtorno Dissociativo de Personalidade) geralmente é uma reação a um trauma como forma de ajudar uma pessoa a evitar memórias ruins, criando uma ou mais personalidades para tal. Personagens com TDP não é algo novo no mundo do entretenimento, desde Eu, Eu Mesmo e Irene, passando por Clube da Luta, Professor Aloprado, Ilha do Medo, Fragmentado, entre outros filmes. É um tema que contém elementos que são muito úteis na criação de um personagem e também abre um bom espaço para “brincar” com a percepção da realidade tanto do personagem quanto do espectador. Com esta presença marcante no mundo pop, não é difícil perceber o que acontece com Steve já de cara no primeiro episódio.
A série é dirigida por 3 diretores diferentes (Mohamed Diab, Justin Benson e Aaron Moorhead) e a roteirização ficou a cargo de uma equipe com nada menos que 9 nomes. Ainda assim, Cavaleiro da Lua utiliza-se de alguns clichês do gênero, como a conversa das personalidades através de espelhos, o corpo que não obedece, entre alguns outros. A trama, apesar de avançar bem nas questões sobre Steven/Marc, fica muito vaga com relação a todo o restante de elementos e personagens que orbitam o protagonista. Chega em um ponto em que parece que a série se esquece de desenvolver a história de pano de fundo que movimenta os acontecimentos para se focar nas questões mais “psiquiátricas” do protagonista. Entretanto, a principal virtude da direção foi conseguir passear entre o divertido e o sombrio na série, principalmente nos 3 primeiros episódios, além de nos brindar com o que podemos classificar como o “melhor episódio de uma série Marvel“, no episódio 5, que entrega luz, sombra, reflexão e drama. Com certeza será um episódio candidatíssimo a ganhar as premiações da temporada em Hollywood.
Ao longo dos episódios vamos entendendo a relação de Marc com Khonshu, porém, a partir do episódio 4, mergulhamos dentro da mente de Spector. A série explora sua psiquê dentro de uma ala psiquiátrica, com direito a momentos tensos e confusos, mas sem deixar de provocar o espectador a entender todas as referências e alegorias ali contidas. E o clímax acontece justamente no episódio 5, com a revelação da origem do seu trauma e o que acontece a partir dali. Entramos em uma sequência pesada de maus tratos infantis, sofrimento e culpabilização. Foi muito interessante como a série abordou tal assunto e ainda mais impressionante a curva dramática aonde as duas personalidades conflitantes, Marc/Steven, se entendem e se reconhecem como partes de um todo. Foi de soltar suspiros.
Oscar Isaac faz um trabalho muito digno em seu papel. Esbanjando carisma, quesito que gerava certa dúvida, já que seria a primeira grande produção completamente centrada nele. E, claro, o ator guatemalteco esbanja toda a sua versatilidade criando dois personagens distintos, com seus próprios magnetismos. O restante do elenco de apoio faz um trabalho competente nas atuações, porém seus arcos são pouco desenvolvidos, aparentando que o roteiro os relegou ao trivial (como dito anteriormente). May Calamawy dá vida a Layla, que, se por um lado também faz um bom papel com seu carisma, por outro a personagem carece de mais profundidade e background, até para entendermos o seu amor pelo Marc. Ela é colocada como a primeira heroína egípcia da Marvel, mas em nenhum momento sabemos o porquê do grande interesse dos deuses egípcios em torná-la sua avatar.
Falando em deuses egípcios, causou estranhamento o tamanho da irrelevância do restante do panteão mitológico. Os outros deuses que formam uma espécie de conselho das pirâmides, foram capazes de aprisionar Khonshu e outras divindades, porém mostraram, além de pouca sabedoria para entender qual era o plano de Arthur Harrow (Ethan Hawke), uma diminuição de força abrupta para deter o vilão no episódio final. Ethan Hawke faz um vilão sombrio e penitente, que lidera uma seita de adoradores de Ammit. Tem uma ideologia que lembra os precogs de Minority Report, fazer a justiça acontecer antes da injustiça, com a balança moral da sua deusa. Uma visão torta de justiça e equilíbrio, chegando até a lembrar Thanos. Porém, aqui, fica um tanto incômodo não só sua motivação que tem relação com sua antiga e pouco explorada parceria com o próprio Khonshu, mas também como conseguiu estender sua seita pelo mundo inteiro – em um momento passa a impressão que todas as pessoas do planeta fazem parte da seita.
As cenas de ação são bem genéricas. Os momentos em que o Cavaleiro da Lua entra em cena com seu manto são bem pontuais, em ambientes escuros, com um CGI bastante duvidoso. Monstros um tanto incompreensíveis que são liberados por Harrow com o poder do bastão de Ammit. Geralmente aqui é a parte que a Marvel sempre brilha, mas não pareceu do mesmo nível de qualidade de outras obras. Cavaleiro da Lua parece ser a produção da Marvel menos Marvel possível, tanto para o bem quanto para o mal. Fica claro que o roteiro e produção focaram mais no que a série tinha no que mostrar de diferente, que na parte que geralmente é o mais do mesmo da Marvel (ação, coreografia, efeitos especiais). E quando chegamos no episódio final (6) concluímos que a própria trama como um todo fica aquém comparado com o desenvolvimento do protagonista.
Entre pontos positivos e negativos, Cavaleiro da Lua fecha sua história de forma positiva. Apresentando e construindo um personagem denso, complexo e carismático. Na luta final descobrimos algo novo em Marc, através de um apagão (novamente). A confirmação da novidade vem nas cenas pós-credito, deixando muitos fãs dos quadrinhos animados não só com a revelação, mas também com a possibilidade de uma segunda temporada. Ou pelo menos o Cavaleiro da Lua reapareça em alguma outra produção. Até o momento não há confirmações. Porém, já nesta primeira temporada, mesmo com seus próprios problemas secundários, Cavaleiro da Lua se estabelece como a melhor série da Marvel pela Disney + até aqui.
Cavaleiro da Lua
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Nota