Após seguidos fracassos, M. Night Shyamalan vem retornando ao trilho do sucesso em suas recentes produções. O diretor de grande êxitos cinematográficos no final dos anos 90 e início dos anos 2000 como Sexto Sentido, Corpo Fechado, Sinais, entre outros, recentemente não gozava mais do mesmo prestígio de outrora, contabilizando insucessos não só de bilheteria como também de crítica em seus últimos filmes. Porém essa nova mudança de cenário se deu início em 2015 com seu penúltimo filme,  A Visita, que obteve boas avaliações dos críticos e uma excelente bilheteria. Mas o verdadeiro retorno de Shyamalan à sua melhor forma pode-se dizer que é em Fragmentado

Fragmentado é um título que já explica muito bem o plot do filme: Pessoas fragmentadas. Pode-se dizer pessoas quebradas, pois fragmentos são os pedaços de um todo que se quebrou. É isso o que aconteceu com a personalidade de Kevin (James Mcavoy), fragmentada em 23 pedaços, 23 personalidades, 23 pessoas distintas dentro de um mesmo corpo. Conhecido e ainda estudado no campo da psicologia, o Transtorno de Personalidade Múltipla (aqui chamarei abreviadamente de TPMu) se dá geralmente quando o indivíduo sofre estresse psicológico grave vivenciado durante a infância; como abuso sexual ou físico. É claro que nem todos que sofreram estes tipos de abuso desenvolverão o TPMu, cada um responde à sua maneira. Porém é inegável que são traumas que podem prejudicar quem os sofre de diversas formas – inclusive observaremos isto no filme.

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Cada personalidade das 23 que habitam em Kevin é completa, com suas próprias memórias e gostos, de forma bastante elaborada e complexa. Com sexos, idades, raças e comportamentos diferentes. Se alternando uma de cada vez à luz, o domínio do corpo de Kevin. O TPMu é um transtorno dissociativo ainda muito discutido na psicologia, e observamos muito bem isso nas  participações da Dra. Fletcher (Betty Buckley), a psiquiatra de Kevin. Ela inclusive dá palestras sobre o assunto, onde mostra que é um transtorno que não só fragmenta a consciência do indivíduo, como também faz sugestões ao cérebro que são somatizadas no corpo, numa espécie de alteração química do organismo. Se uma personalidade for diabética, o corpo para de produzir insulina, enquanto que a outra passa a ter potencia muscular limitada de uma criança, já que é uma personalidade infantil. Um campo ainda a ser mais profundamente estudado até na vida real.

Em Fragmentado uma das personalidades de Kevin, Mr. Dennis, rapta 3 adolescentes. O plano original era raptar as 2 amigas, porém Casey (Anya Taylor-Joy), que aceitara a carona, acaba entrando nos planos. Dennis com a ajuda de mais 2 personalidades, Hedwig e Patricia, mantém as adolescentes cativas. No primeiro momento o espectador presume que as 3 são raptadas devido a algum comportamento lascivo de Mr. Dennis, porém, ao longo das cenas, este cenário toma outro contorno quando nos é explicado que elas estão ali para participarem de uma espécie de ritual, servindo como o “alimento sagrado”. Percebemos que, pelo conceito usado no filme, a cada trauma vivenciado há um novo fragmento na consciência de Kevin para suprir e inibir aquele sofrimento. São 23 ao todo, porém Dennis e Patricia querem que a 24ª personalidade, ainda inibida dentro de Kevin e desacreditada pela Dra. Fletcher, venha à luz. Uma personalidade que ultrapassa as limitações humanas. Um novo ser.

Shyamalan constrói muito bem sua narrativa, alternando bem entre as explicações do transtorno e o clima de suspense do cativeiro ao longo de Fragmentado. Inclusive as alternâncias entre as personalidades de Kevin, traz dinâmica e ritmo ao longa, que alterna momentos de extrema tensão com Dennis e Patricia, com momentos mais calmos, porém ainda sombrios, com Hedwig. Concorrente ao plot principal, vemos flashbacks da infância de Casey, memórias que vão construindo o porquê da personagem ser diferente das outras meninas. Sem dúvidas é um enredo muito especial e instigante aos espectadores, as construções para o clima inquietante ao longo do filme é digno de palmas a Shyamalan, que, como de hábito, também faz uma pontinha no filme.

James Mcavoy está soberbo no papel – ou papéis – de Kevin. Mostrando todo o seu potencial nas mudanças drásticas entre as personalidades. A feminina, o problemático, a criança, o inseguro, o confiante e, literalmente, o perigo. Passeando entre mudanças de voz, comportamentos e expressões dignas de uma aula de teatro. Na verdade é possível utilizar este filme como material didático na escola de atores. Um trabalho mais do que digno de premiação. Anya Taylor Joy, após um bom trabalho em A Bruxa, também está muito bem como Casey, conseguindo já criar seu nome no gênero do suspense.

A ideia principal trabalhada no filme é sobre as pessoas traumatizadas, quebradas por suas vivências, e como elas podem tirar forças de suas fraquezas quando tomam consciência de sua excepcionalidade. Ideia comum nos filmes de Shyamalan, vide Sexto Sentido, A Vila e Sinais – inclusive há uma correlação ainda mais evidente com um outro filme dele. Logicamente o exemplo de Kevin é muito exagerado para que possa haver uma identificação forte com o espectador sobre isto, apesar de existir casos semelhantes na vida real. Porém o caso dele te prepara para o drama de Casey, a menina estranha e solitária que também fora quebrada psicologicamente por sua experiência de vida. Um caso traumático mais identificável ao espectador, e também ao próprio Kevin, que não só se indentifica com ela como também a autoriza como uma pessoa forte por também ser uma pessoa “quebrada”. E assim como Kevin se tornou “forte”, descobrindo o quão especial ele pode ser, Casey toma forças para agir contra o que lhe afligia – como podemos presumir pela cena de dentro do carro de polícia.

Fragmentado obtém excelente êxito em suas várias propostas. Expor um enredo intrincado de forma muito competente, com excelentes passagens narrativas e construções de roteiro, e isto é magistralmente e sutilmente mostrado com as várias camadas de blusas de Casey sendo relacionadas às varias cascas que escondem suas marcas, seus “fragmentos”. Tudo isto vai se somando, para o grande clímax do filme e sua mensagem. Um filme a ser mais do que assistido, um filme a ser experienciado.

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Daniel Gustavo

O destino é inexorável.

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