Já falamos bastante de Stephen King aqui no Tarja por uma série de motivos: adoramos terror, adoramos livros e adoramos filmes. Devido a tudo isso, nós acabamos esbarrando no autor King constantemente. Talvez um dos escritores mais adaptados para a grande tela. Aqui vamos falar sobre a adaptação de um dos seus livros mais populares e que é um grande exemplo do porquê dele ser um grande escritor.

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Se eu te desse um livro de quase quinhentas páginas e falasse “É sobre um carro que ganha vida e começa a matar todo mundo que mexe com um adolescente nerd”, você talvez pensasse que tem forma melhor de gastar seu tempo. King é tão hábil com as palavras que até essa premissa absurda fica profunda e empolgante. O livro acabou virando um símbolo de como ele cria personagens tão reais, e desenvolve com toda calma do mundo os conceitos sobrenaturais de seus livros, que terminamos o romance com medo e acreditando piamente que Christine estava viva e era, incrivelmente, mortal. A obra foi publicada originalmente em 1983 e o filme que a adapta chegou às telas no mesmo ano.

O filme é dirigido por John Carpenter. Se você gosta de cinema talvez saiba de quem se trata, mas de qualquer forma vamos a uma recapitulação básica do porquê dele ser um grande nome do cinema. Carpenter tem um bom par de clássicos cults em seu currículo, como “Fuga de Nova York”, “Os Aventureiros do Bairro Proibido” e alguns clássicos do terror e ficção científica, como “O Enigma de Outro Mundo” e “Eles Vivem”. Christine acaba entrando nessa lista de clássicos e é um bom exemplo de “filme dos anos 80”. Um filme bacana sem duvida, mas é uma boa adaptação?

Para responder essa pergunta é importante dizer que o roteirista que adaptou o livro para o cinema é Bill Phillips, ou seja, já temos outra visão dessa história, e com isso temos modificações da ideia original. A extensa maioria das adaptações de King para o cinema sempre possuem uma falha que é impossível de não acontecer: os personagens não são tão profundos. King tem muito tempo para mergulhar na mentalidade de cada pessoa que está na sua história, além do fato de que ninguém fica sem um mínimo de profundidade. Todo mundo tem sua história e um passado. Já num filme é impossível colocar tudo isso, pois não existe tempo hábil, então é natural que os personagens pareçam um pouco mais rasos do que no livro. Mas Bill fez algumas mudanças conceituais sobre a natureza do carro assassino, e aqui que temos as principais mudanças entre as duas obras.

No livro o carro é uma verdadeira entidade. Na verdade é um conceito que se repete muito nas obras de King, mas ele sempre o faz de forma que não pareça repetitiva. Às vezes temos a impressão de que Christine só escolheu existir na forma de um carro para sugar as vidas humanas de quem tem o azar de cair no seu caminho. O principal fator do livro é a relação doentia que existia entre o carro e seu “primeiro dono” LeBay, que vende a máquina para Arnie quase como se passasse uma maldição propositalmente. No filme isso é completamente diferente. O roteiro faz questão de mostrar em sua primeira cena o carro saindo da fábrica e matando duas pessoas. Ou seja, ela simplesmente já saiu da fábrica maldita e assassina sem muito motivo. Enquanto isso, no livro não sabemos o que tornou aquele carro em específico um ser maldito, e esse é o grande charme desta história.

As mudanças do filme não param por aí. A própria figura do LeBay é quase tão assustadora quanto o carro, mas no longa ela simplesmente não existe. O personagem está lá, mas ele diz que o carro na verdade era do seu irmão. Assim que ele vende o carro sua importância some da história. Isso é uma mudança que enfraquece muito o terror da história, mas ainda assim não é um erro fatal. Só deixa tudo um pouco menos interessante para quem já leu o livro, mas não faz falta para quem está tendo o primeiro contato com a história pelo filme. O grande foco das duas obras é ver a destruição da personalidade do personagem de Arnie conforme ele fica numa relação mais doentia com seu novo carro e nisso o filme é muito bem sucedido.   

A direção de John é muito boa e ele realmente se diverte em fazer um filme de monstro. Sabe muito bem como fazer o carro parecer assustador e demonstra ter muita técnica em cenas de ação. As cenas como ele faz o carro amassar e desamassar é sensacional para os anos 80 e são boas até hoje. Em nenhum momento o filme cai no ridículo, talvez nos olhos contemporâneos ele pareça muito clichê, mas naquela época ele não era. Os atores também são bem carismáticos na medida do possível e o ator que faz Arnie, Keith Gordon (que virou um grande diretor de séries), realmente entrega uma atuação incrível e ela é fundamental para manter o filme bom. Se o personagem Arnie não ficasse bem executado talvez tudo tivesse ido pelo ralo.

Como o livro é bem grandinho o roteiro precisa condensar muitos eventos, e ele até escolhe bem o que pular e o que manter, porém tem alguns pontos fracos. Leigh Cabot é uma personagem importantíssima e cheia de personalidade e neste longa ela parece ser só a menina em perigo. O detetive Junkis, vivido pelo ótimo Harry Dean, é completamente jogado na trama, tirando conclusões baseadas no nada (o que é péssimo para um personagem que tem como função ser um detetive). O dono da garagem tem uma morte completamente boba que também não faz sentido com a própria lógica do filme. Mas nada disso faz o filme ficar ruim, pois Carpenter sabe muito bem o que está fazendo, contornando tudo o que ficaria ridículo e transformando em algo muito divertido de se ver.

No fim das contas da comparação a obra de Carpenter fica mais rasa. Ela é apenas um filme de mostro e não tenta ser mais nada além disso, e justamente por isso se sai muito bem. O livro, por outro lado, é uma ótima história sobre adolescência, um bom suspense, mas ele parece ser secundário diante dos dramas comuns que cada personagem vive. O clima da publicação é muito mais risco e cheio de nuances. Para quem é fã de um livro que faz mergulhar num mundo particular, Christine é uma ótima pedida. Para quem quer só ver um filme de terror de mostro no melhor estilo anos 80, Christine também é uma ótima pedida.

 

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Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

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