Se fôssemos elaborar uma lista de assuntos sobre os quais poderíamos discorrer “por horas e horas e horas“, certamente teríamos de incluir os conflitos do século XX, e as justificativas pra isso são em verdade bastante simples. Além de ser um pré-requisito pra entendermos o funcionamento do mundo hoje (terrorismo, ascensão da extrema direita e da extrema esquerda, etc), o século XX foi um momento em que a humanidade mostrou uma de suas facetas mais cruéis, mas foi também um período em que muito se pensou sobre um possível potencial pacífico do gênero humano, e uma consequência dessa dicotomia foi uma produção cultural riquíssima, que nos legou nomes como Ghandi, George Orwell, Carl Sagan, Aldous Huxley, Albert Einsein, Isaac Asimov, e outros. Em terras tupiniquins, o escritor Eduardo Spohr se mostrou um profundo interessado pelo século XX, compartilhando esse interesse com os leitores por meio de seu excelente livro Anjos da Morte, o segundo volume da trilogia Filhos do Éden.
Após os eventos ocorridos no primeiro tomo (Herdeiros de Atlântida), Kaira, uma celestial com poderes oriundos do elemento fogo, decide desobedecer diretamente às ordens do arcanjo Gabriel e sair à procura de Denyel, um celestial da casta dos querubins que foi tragado pelo fluxo do mítico rio Oceanus, contando com a ajuda do anjo guerreiro Urakin e do surpreendente Ismael, da casta dos hashmalins, casta esta que defende, principalmente, que a redenção dos seres humanos só pode ser obtida pelo caminho do sofrimento. Ao mesmo tempo em que visita cenários míticos, o leitor conhece também personagens novos e carismáticos (o próprio Ismael é um, assim como Abul das Profundezas, por exemplo), fazendo da missão de Kaira uma história recheada de elementos de thriller, aventura, fantasia e terror.
Ao mesmo tempo em que conta a jornada de Kaira e seus aliados, Anjos da Morte narra, antes de mais nada, a saga de Denyel, mostrando os eventos que culminaram na decadência do anjo, fazendo dele um notório beberrão/fanfarrão, que não toma partido nos eventos celestes e, o que é mais grave, nega suas diretrizes de casta. A figura do herói problemático, cafajeste e traumatizado por seu próprio passado não é novidade, mas, pra quem gosta dessa concepção de herói, Denyel é um prato cheio, principalmente quando nos atemos à relação dele com outros personagens, como o querubim Mikail, o motherfucker/epic/master sgto Craig, a femme fatale Sophia, o ofanim Zac e outros.
Se lembrarmos do excelente A Batalha do Apocalipse, vemos que a narrativa é guiada por um evento, que, naturalmente, é o Apocalipse, mas, ao contar-nos a saga de Denyel, vemos Eduardo Spohr reinventando sua própria escrita, usando agora a figura de um personagem para guiar a narrativa. É, com certeza, uma fase de amadurecimento da escrita do autor, mas há um único ponto contra, que está na execução da narrativa, que é marcada pela oscilação constante entre passado e presente ao longo dos capítulos, onde uns contam a jornada de Kaira, e outros contam a saga de Denyel, a tal ponto que, em dados momentos, é preferível pular alguns capítulos pra dar continuidade a uma parcela da trama, e tornar a ler os capítulos pulados depois… Esses saltos entre passado e presente não são novidade, não só pra quem já leu A Batalha, mas na literatura de modo geral, porém, em aBdA, essas idas ao passado e retornos ao presente não são tão abruptos e nem tão frequentes quanto no segundo volume de Filhos do Éden.
Em Anjos da Morte, Eduardo Spohr fez um trabalho semelhante ao de autores como Alexandre Dumas, por exemplo. Assim como o autor de O Conde de Monte Cristo e Os Três Mosqueteiros, Eduardo se apropria de cenários e fatos históricos reais pra ambientar a narrativa, um recurso que tem se tornando bastante comum de uns tempos pra cá. É nesse ponto que o leitor se impressiona com o quão profunda foi a pesquisa de Eduardo sobre os conflitos do século precedente, ao temperar a trajetória de Denyel com elementos noîr e menções à cultura pop, da 2ª Guerra Mundial ao final dos anos 80, culminando na queda do Muro de Berlin e o consequente fim da Guerra Fria. Rádios domésticos, filmes westerns, O Diário de Anne Frank, Woodstock, Jack Daniels, Creedence Clearwater e outros são alguns elementos que ajudam a enriquecer a imaginação dos eventos narrados. Confesso, no entanto, que senti falta de um elemento em particular da cultura pop da época da 2ª Guerra, que foram as pin ups, mas nada que prejudique a narrativa.
Após o desfecho tanto da aventura de Kaira quanto da trajetória de Denyel, Eduardo faz um adendo acerca dos acontecimentos de guerra tais como ocorreram e tais como foram testemunhados por Denyel, além de incluir um glossário e uma linha do tempo do spohrverso, e, o mais bacana, uma playlist com as músicas mencionadas ao longo do livro, incluindo títulos como a clássica In The Mood, de Gleen Miller, até California Dreaming, do grupo The Mamas & The Papas.
Em dada passagem do prefácio, o próprio Eduardo Spohr declara que Anjos da Morte foi o livro que ele sempre quis escrever, e o resultado foi de total êxito. O segundo tomo da trilogia celeste é um fan-service que comunga o spohrverso com elementos históricos para nos contar sobre a vida de Denyel, ao mesmo tempo em que dá sequência à trilogia Filhos do Éden, com a missão de Kaira.
Ah, e sim, você vai chorar igual criança no capítulo 72 de Anjos da Morte…