O cinema americano é fissurado em contar sua própria história. São inúmeras produções que mostram bastidores de filme, biografias de roteiristas, atores e diretores, além de grandes homenagens a estilos e períodos desta arte. A Netflix, ao mesmo tempo, lançou o longa Filmando Casablanca e agora essa série que mistura personagens reais e fictícios de Hollywood no pós Segunda Guerra Mundial.

O estilo de roteiro tem uma pegada de novela, no que diz respeito a núcleos de personagens que se conectam numa grande trama. As mentes por trás dessa produção são Ryan Murphy e Ian Brennan. Ambos trabalharam juntos em Glee, Scream Queens e Murphy ainda carrega no currículo a série American Horror Story. Esse é o trabalho mais sério e audacioso dos dois, onde se tenta fazer uma grande homenagem a Hollywood ao mesmo tempo em que a crítica.

Essa é uma ótima primeira temporada que consegue emocionar muito com uma narrativa sobre os desajustados mudando o mundo através da arte. A grande mensagem é que um filme pode mudar o mundo para melhor e que nunca se deve negar sua própria identidade. A história foca muito no preconceito contra homossexuais e negros e o machismo entranhado na cultura americana e como isso se reflete na produção de filmes. Uma ode ao poder transformador de uma boa história, da representatividade e da magia do cinema.

Mas mesmo que essa seja uma série com a melhor das intenções ela às vezes exagera no otimismo, já que ela modifica eventos famosos da história do cinema e os apresenta como verdadeiros. Esse problema só se torna mais evidente no fim da temporada onde a ânsia por mostrar uma versão melhor dos fatos comete o erro de fingir que certas injustiças foram corrigidas e dando a entender que um filme, e eventos que não ocorreram, ajudaram a acabar com os preconceitos dos anos 1948. Todos sabem que esses preconceitos continuaram, e ainda existem em níveis diferentes nos dias de hoje, e que o mundo não virou uma utopia mágica de igualdade antes dos anos 5 por causa de um evento na Califórnia.

O roteiro, de modo geral, é muito bom e consegue criar personagens muito complexos e interessantes. Os que chamam atenção são os interpretados por Joe Mantello e Jim Parsons. Este último nome você deve conhecer do icônico papel de Shledon em The Big Bang Theory. Aqui este ator tem toda a chance de brilhar e mostrar um talento inacreditável para construir o personagem mais complexo e cheio de camadas de toda a série. Mantello também interpreta uma figura bastante complexa e funciona como o inverso do personagem de Jim, como se os dois fossem lados diferentes de como lidar e viver com um mesmo problema.

De modo geral todos os atores fazem trabalhos excelentes, em papeis difíceis e desafiadores. Só existe um nome que se destaca de forma negativa: Samara Weaving. Sua personagem é extremamente caricata e parece que está em outra produção. É como se ela estivesse interpretando uma patricinha dos anos 2000. Isso até fazia um pouco de sentido no primeiro episódio, mas logo depois fica completamente desconexo de todo o clima. O curioso é que essa atriz já apresentou um ótimo trabalho em Casamento Sangrento. Na verdade, na primeira metade da temporada, tudo que envolve a família Ace é extremamente caricato e não combina com o resto do tom.

Hollywood aborda muito o sexo e a sexualidade. Em seus primeiros episódios existe uma pegada que envolve muita sensualidade e o submundo da prostituição. Somente depois que a trama se adentra de verdade nos bastidores do cinema e numa saga verdadeiramente emocionante dos excluídos lutando pelo seu espaço. É quase impossível não torcer por eles e ficar muito engajado com essa história. Existe uma grande profundidade no tema de como uma sociedade preconceituosa pode cercear a liberdade individual e lentamente matar a alma de alguém aos poucos.

Para quem gostou dessa série aqui vai uma pequena listinha de histórias sobre cinema que podem lhe interessar tanto quanto, e se não mais.

  • Ed Wood (1994)- Conta a vida do que foi considerado como o pior diretores de todos os tempos. A homenagem de Tim Burton ao cinema trash de ficção cientifica e terror dos anos 50.
  • An Adventure in Space and Time (2013)- Um longa sobre a criação e produção da primeira temporada de Doctor Who em 1963. Obrigatório para todo o fã da série.
  • Era uma vez em Hollywood (2019)- O mais recente filme de Tarantino mostrou como eram os bastidores do cinema da década de 70 e também modifica eventos reais, mas de forma muito mais eficiente e consciente do que essa série.
  • Cantando na Chuva (1952)- Retrata a transição do cinema mudo e falado num dos maiores musicais de todos os tempos. Além disso, ele tem uma das maiores metalinguagens da história do cinema.
  • Stan & Ollie (2018)- Uma biografia da dupla, que ficou conhecida no Brasil como Gordo e Magro. Por consequência vemos os bastidores da comédia do cinema.
  • Ave, Cézar! (2016)- Uma produção dos irmãos Coen que se passa num período bem próximo dessa série. Uma comédia que foca mais no período da perseguição dos anos 50 causada pelo Macartismo.
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Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

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