Apesar da Netflix já ter perdido a áurea de qualidade inquestionável que seus primeiros anos de produção original possuíam, ela ainda nos dá pequenos presentes aqui e ali. Seja em séries ou filmes, ela ainda é capaz de criar obras realmente interessantes. Muito se falou em alguns festivais do filme Os Meyerowitz pela atuação de Adam Sandler, e ele até alegou que merecia um Oscar por esse trabalho. Ironicamente o mesmo ator, também na Netflix, produziu alguns filmes de qualidade altamente questionável. Até Sandy Wexler, um filme onde ele realmente se esforça em compor um personagem, não se provou um longa realmente bom. Será que dessa vez ele realmente foi bem?

Publicidade

A família Meyerowitz é complicada. O pai da família é um artista temperamental e incrivelmente egocêntrico de muitas formas. Ele possui três filhos, e cada um segue suas vidas lidando com as cicatrizes emocionais que este pai causou. O patriarca da família já se encontra idoso e um evento inesperado acaba reunindo esses três irmãos, fazendo-os repensarem seus traumas familiares.

Curiosamente a pessoa que mais tem capacidade de destruir a vida de uma criança são seus próprios pais. Muito se fala sobre o poder da família e existe até uma certa glorificação do conceito dela na cultura pop, mas, se pararmos para pensar, grande parte das famílias são recheadas de problemas. A ideia deste filme é justamente discutir esse conceito. A família é realmente essa coisa mágica que todos insistem em adorar e defender com unhas e dentes? Será que às vezes não é justamente a família um dos principais responsáveis pelos traumas e situações horríveis que somos obrigados a passar?

O brilhantismo do roteiro de Noah Baumbach é falar desses assuntos tão delicados de forma leve e cômica. Não é o tipo de humor que vai fazer dar gargalhadas, mas temos diversas situações impagáveis e altamente reconhecíveis para qualquer um que não tem uma visão idealizada de família. Ele também toma conta da direção, usando muito close para valorizar as atuações com diálogos muito bem escritos e reais. Os outros dois roteiros que ele possui em seu currículo são “O Fantástico Senhor Raposo”, “Madagascar 3” e “Frances Há”.

Falando nas atuações, precisamos falar do polêmico Adam Sandler. Ele ficou popularmente conhecido como um péssimo ator que faz péssimos filmes, mas que já fez uns besteiróis divertidos nos anos 90. Entretanto, os poucos que viram “Embriagados de Amor” sabem que ele é capaz de entregar uma boa atuação. Neste filme ele repete a mesma entrega, é realmente impressionante. É um personagem que se constrói nos detalhes e em pequenos maneirismos, que ele executa muito bem. É realmente um trabalho para se orgulhar. Acredito que ele (não sei por quê) simplesmente escolhe não usar esse talento na maior parte do tempo. Temos também Dustin Hoffman fazendo o patriarca, que de certa forma move toda a história. Hoffman realmente nos faz odiar seu personagem e entender o que ele causou aos seus filhos. Ben Stiller também entrega uma atuação espetacular em algumas cenas, em um papel tão complexo quanto o de Adam. Elizabeth Marvel fecha o trio de irmãos com uma personagem igualmente complexa e fazendo um papel mais tímido, mas igualmente interessante.

O filme possui poucos defeitos. Um deles é o filho do personagem Matthew, que só aparece por voz quando fala com o personagem de Stiller pelo telefone. As falas da criança são completamente bizarras e sem sentido. Não geram piadas e chega num nível de criar uma dúvida se ele teria um problema mental, mas até mesmo isso não é tocado no filme. Parece que todos os outros personagens ignoram que até para uma criança de cinco anos ele fala de um jeito completamente desconexo. O filme como um todo é dividido pela visão de cada personagem, mas depois essa ideia se perde um pouco, o que faz perder um pouco do sentido do porque desta divisão. Quase como se o filme abandonasse a própria estrutura que criou.

O egocentrismo é mostrado em sua essência neste filme e de forma muito inteligente. O que realmente é original é o tipo de família que o filme critica. Geralmente dramas familiares sempre colocam famílias tradicionais e de valores antiquados como grandes vilões, e mostram jovens cheios de vida querendo se libertar de pais abusadores e extremamente violentos. Este filme vai por outro lado. Aqui a família que é criticada é uma versão mais moderna do grupo familiar que apoia as artes, intelectual e politizada. Até mesmo essas pessoas são capazes de maltratar seus filhos (de forma menos óbvia), serem insuportáveis e, até certo ponto, perversas. Mas não espere ver atos escabrosos e descarados. São dramas familiares construídos nos detalhes e com acúmulos de anos que só vieram a explodir com todos em suas respectivas vidas adultas. Apesar desta carga de drama o filme tem ótimos momentos engraçados.

Talvez você veja um pouco de sua família aqui e entenda algumas questões pessoais suas. Talvez fique grato por não passar pelos problemas que esses personagens passam. Sem dúvida o filme é eficiente em mostrar que não precisamos ficar tão agarrados a esses conceitos e que não é porque pais e mães criaram seus filhos que isso os torna santos intocáveis. Todo mundo é falho e a família pode sim ser um dos principais malefícios na vida de alguém. Mas ainda assim podemos perdoar, seguir em frente ou xingar todo mundo e ir embora, viver sua vida. A decisão é sua.


Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe

Nota

 

Publicidade
Share.
Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

Exit mobile version