Abordando um tema denso e complexo, Una expõe a relação de abusada e abusador de um caso de pedofilia tentando fugir do maniqueismo comum, arrancando fortes momentos de reflexão e empatia com cada camada de trauma sofrido pela protagonista, seus questionamentos e a sua busca por resposta. Porém a falta de coragem no desfecho pode colocá-lo em um patamar menor do que o pretendido. 

Adaptando a peça Blackbird e dirigida pelo estreante australiano Benedict Andrews, mais conhecido por seus trabalhos no teatro, Una conta a história de sua homônima protagonista (Rooney Mara), uma mulher por volta dos 28 anos que tenta levar sua vida em frente, mas que é assombrada pelo seu passado. Una aos 13 anos sofreu um caso de pedofilia com o vizinho e amigo de seu pai, Ray (Ben Mendelsohn), de no mínimo 20 anos mais velho do que ela. Descobertos, Ray é preso por 4 anos e desaparece da vida de Una. Apesar de sentir repulsa pelo o que sofreu e de todas as consequências que aquilo trouxe a sua vida e família, ela ainda vivia assombrada pelo passado, ainda tinha dúvidas se o que ela tinha vivido com Ray foi um aliciamento de menor ou um amor mútuo. Como o próprio título do longa e nome da protagonista diz, se ela foi única (Una) ou não. Quando ela descobre o atual trabalho de Ray, busca-o para ter uma conversa e tirar esse “relacionamento” a limpo, nos levando a um grande labirinto psicológico repleto de sentimentos e feridas abertas.

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Claramente vem à mente Lolita, outra obra que aborda este tipo de relação, e, o mais interessante, que também é possível vermos os dois lados da história. Quando Una confronta Ray, descobre que ele após ter sofrido na prisão, lutou para reconstruir sua vida, mudou de nome, constituiu uma família. Porém, Una quer saber o que ela significou para Ray, se todas as promessas e juras de amor feitas por ele não passavam de mentiras para conseguir o que queria. Se ela foi mais uma menor abusada no mundo ou se viveu um caso especial de amor. Durante a conversa o filme passa a trabalhar na mente do espectador, pois estas dúvidas também passeiam por nossas cabeças nos bons diálogos no confronto entre os dois, que em alguns momentos chega a nos trazer grande ojeriza. Mostrando feridas abertas e traumas não resolvidos. Una nos apresenta um confronto de abusado e abusador sem o julgamento moral e social diretos, e sim o julgamento pela própria vítima, Una.

Com uma narrativa em sua maioria sem o dito maniqueismo, o filme ao longo de seus 94 minutos de duração, impõe ao espectador empatia por Una e uma certa humanização do agressor. Por muito tempo fica obscuro para o espectador, assim como em Una,  ter a certeza de que foi um caso de “amor” ou aliciamento. Dúvidas como o porquê de tê-la abandonado, se era realmente apaixonado por ela ou era apenas um depravado que tinha “tara” por meninas. Tudo isso dentro do local de trabalho de Ray, onde ele vive sob um nome diferente e sem passado. Conforme eles relembram o acontecido durante a conversa, os acontecimentos dentro do local de trabalho acaba por relembrar os locais escondidos e a perseguição que eles viviam à época. Trazendo ainda mais tensão aos diálogos.

Una explicita bem como um evento traumático desse pode afetar para sempre uma vida, ou mais de uma. Em um trecho Una diz a Ray: “o que uma menina aos 13 anos pode oferecer a um homem mais velho além de seu corpo?” Percebemos como tudo aquilo sofrido ainda influencia no cotidiano da protagonista, sua família destruída, sua vida social repleta de julgamento e como o sentimento do sexo pode ter vários significados, mas nenhum que lhe traga algo positivo.  Não há um sentimento de vingança, mas sim de compreensão do caso e, por consequência, uma compreensão própria. Por outro lado vemos Ray que tenta fugir do confronto, evitando se pronunciar sobre o caso e esconder seu passado. Nesse confronto de uma pessoa que conseguiu fugir da sua culpa contra a outra que vive na impossibilidade de se reconstruir após um ato inescrupuloso contra sua pessoa, imprime uma tensão permanente em Una, que se dá pelos diálogos e principalmente pelos silêncios. As perguntas de Una revelam seu sofrimento e sua confusão mental.

Esse grande e tenso embate cria um labirinto mental nos personagens que se fragilizam ao máximo, no caso de Una ao ponto de quase humanizar seu agressor, numa relação tão complexa que nem o filme soube lidar direito. Nessa encruzilhada Una fecha sua narrativa de uma forma que parecia não querer fazer durante todo o longa. Dando pontas soltas para o espectador entender a resposta que Una obteve e se isentar de qualquer polêmica maior.

Una expõe a cicatriz social e psicológica de um caso degradante e incômodo, trazendo uma jornada intensa e bem pensada por respostas da protagonista. Teve coragem de buscar o controverso, com bons diálogos e cenas aprofundadas técnica e esteticamente, trazendo um grande desconforto para o espectador. Mas faltou convicção de ir até o fim. Abre polêmicas mas as responde de maneira fácil, com pontas soltas para o espectador interpretar de forma obvia o desfecho da contenda. Mas ainda assim uma jornada de grande valor para quem o assiste.

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Daniel Gustavo

O destino é inexorável.

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