Algo de belo e sobrenatural enlaçava aquelas vidas… e mortes. Já eram viúvos Heitor e Luíza quando estavam, naquela abafada noite de dezembro, no restaurante onde Clarissa, simpática amiga em comum, trabalhava. O restaurante era o favorito dos dois clientes, que passaram a cumprimentar-se cordialmente em consideração à querida funcionária.

Apesar dos frequentes encontros no restaurante onde Clarissa trabalhava, o início desta história se dá longe, em outro extremo da cidade, estando Heitor e Luíza no auditório de um grande teatro. Finda a peça a que assistiam, acesas as luzes, Heitor reconheceu a mulher sentada na segunda fileira de assentos à sua frente. Achou curioso estarem ambos ali, tão distantes do lugar habitual no qual frequentemente viam um ao outro. Além de curioso, estava impressionado com o que sugeria a roupa que ela usava. Seria talvez uma mulher muito ousada e segura de si. Bonita aquela roupa não era. Definitivamente não era.

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Luíza optara por usar naquela noite um macacão de seda azul-marinho muito alegremente estampado com folhas em tons variados de verde, algumas em amarelo, e o que mais chamava a atenção: enormes borboletas cujas asas variavam em vibrantes tons de azul. Andava segura de si, parecia querer mesmo que aquelas borboletas impusessem sua presença e, ao ver Heitor, fez-lhe um gesto em cumprimento. Algo bem mais entusiasmado que o costumeiro “oi” no restaurante, o que estimulou Heitor a convidá-la para um café.

Convite aceito, sentaram-se à pequena mesa do café localizado ao lado do teatro, um momento quando vieram a saber coisas interessantes um do outro: que ele era materialista, homem das ciências exatas e que ela, por sua vez, mulher romântica, amava arte e era dada a crenças místicas. Diferenças à parte, havia também algo marcante em comum entre eles: para ambos a viuvez chegara especialmente cedo, e não viveram, por não terem tido tempo, os prazeres nem desafios de um casamento de longa duração. Ela dizia-se, contudo, premiada com duas meninas. Ele só tinha a si mesmo. Detalhes suficientes de ambas as vidas foram confortavelmente compartilhados, possibilitando um crescente interesse amoroso que não tardou em converter-se num relacionamento.

Semanas depois do encontro no teatro, resolveram que surpreenderiam a amiga ao chegarem ao restaurante como um harmonioso casal. Ao ver os dois, Clarissa comemora:

– Alegria para mim, que conheço bem os dois, vê-los juntos. Excelente novidade. Gostei mesmo.

Um ano depois desse encontro, passaram a viver juntos. E após doze anos de convivência, ainda viviam em harmonia e estavam felizes, segundo pensava ele… Mas ela, que guardava um desejo até então silenciado, resolve, definitivamente, que iria realizá-lo:

– Eu quero me casar com você. Quero o casamento. Está me ouvindo? Eu vou me casar com você nem que seja a última coisa que farei na vida.

Nos planos dele, casamento não se incluía. Não que lhe fosse ausente um legítimo amor por Luíza, mas temia que questões até então irrelevantes tomassem forma e força ameaçadoras ao amor dos dois. E, desesperado, naquela que foi a pior das discussões acerca do tema, pontuou:

_ Esqueça! Não haverá casamento.

Mesmo compartilhando o medo do fracasso da relação, o casal divergia com relação à forma com que ela deveria seguir dali em diante. Luíza via-a realizar-se apenas no casamento, o qual, para ele, colocava em risco tudo o que haviam construído.

Por fim, convencida de que Heitor não aceitaria casar-se, Luíza caiu doente. Doente do corpo. Doente da alma. Ela, que era o brilho e as cores que sustentavam aquela casa, transformava-se a cada dia mais severamente em uma mulher dependente, amarga, queixosa, ranzinza e, sobretudo, vítima das circunstâncias.

E assim as coisas iam ficando cada vez piores até que, numa bela manhã de primavera, estando Heitor sentado à mesa da sala de jantar, sentiu o golpe certeiro de alguém que lhe arrancava das mãos o jornal que ele lia sem ler. Era uma das filhas de Luíza que, ao perceber o olhar questionador do homem, com firmeza interpelou:

 _ De que você tem medo?! De que você tem tanto medo?!

Nocaute. Heitor não sabia explicar com exatidão. Ao ver a moça sair atordoada, chorando, batendo porta, imaginou que algo se agravara no quarto de onde ela havia há pouco saído. Naquele onde a mãe descansava. Heitor precisou sair também. Faltava-lhe ar. A cabeça pesava. No coração, ocorrências de impossível descrição. Resolveu andar na orla da Lagoa da Pampulha, próxima à sua casa. Em frente à lagoa, sentou-se olhando fixamente para a água, como se a perguntar e esperar por respostas que não viriam. E assim ficou alguns minutos, quando sentiu um inseto pousar em seu pé esquerdo. A borboleta não era das menores e o fez sentir-se um pouco hipnotizado. Ele mantinha fixos seus olhos no par de asas que insistiam num abrir e fechar azul e ininterrupto. Passados poucos segundos, desperto por uma fresca rajada de vento, Heitor decidiu voltar a casa. Não sem antes passar em outro lugar.

Sem conseguir explicar o crescente entusiasmo, que em nada combinava com o pesado cenário que a situação compunha, Heitor procurou presentear Luíza, mesmo acamada e em nada semelhante à vibrante e expressiva mulher com quem convivia até o dia em que dissera que decididamente não se casaria com ela. Se ela dormia ou se fingia dormir, ele não quis se certificar. Ao lado da cama, aberto sobre uma cadeira o ridículo – na opinião dele – macacão usado por ela quando se conheceram. Heitor estremecia: as borboletas na estampa. Exatamente como aquela que o visitara à beira da lagoa.

– Ah, sim… Agora, borboletas comunicam-se comigo? – perguntou-se irônico e debochado, embora compreendesse muito bem o porquê de o macacão estar ali.

Observou a caixinha de presentes. Surpreendeu-se:

– Quanta coincidência! Tinha que ser o mesmo azul dessa borboletona brega pra chuchu? A Luíza vai achar que fiz de propósito.

Saiu do quarto. Envolveu-se com alguns afazeres e alegrou-se, uma hora depois, com a imagem da mulher que, embora fragilizada, surgia ali em sua frente embelezada exclusivamente para agradecer-lhe o presente:

– Aceito! Aceito! Aceito! – ela vibrava.

A vida na casa, desde então, assumiu nova atmosfera. Havia agora movimento, uma agitação feliz. Luíza, que estudara Artes Plásticas, e as filhas, envolvidas em crescente entusiasmo com os preparativos do casamento que aconteceria em breve. A cerimônia seria simples, porém com um quê de sofisticação e para poucos e especiais convidados.

Tinha chegado o grande dia. Cerimônia perfeita. Casal, familiares e convidados em elegante comemoração. E seriam, desde então, todos felizes para sempre e chegamos assim ao fim da história, certo?

Errado!

E a lua de mel? Como um casamento tão bonito não seria seguido de uma romântica viagem? Eles mereciam – pensava Luíza.

Dessa vez, entretanto, Heitor brigaria até o fim. Não iriam. Ele não curtia viagens. E agora era hora de ela respeitar o desejo dele. E, surpreso, foi de fato respeitado. Luíza não insistiu.

Pelo menos na lua de mel, porque aceitara um convite de um grupo de artistas amigos para uma viagem em excursão à capital pernambucana, com o fim de visitar a coleção de arte de Ricardo Brennand, criador do Museu de Armas Castelo São João, composta por peças de tapeçaria, mobiliário, armaria, decoração e pintura, do Brasil e estrangeiras. Amante das artes e empolgada com o passeio, Luíza aceita o convite em nome dela e do marido. Deu briga. Mas…

Quinze dias após a briga, à tardinha, estava o casal já instalado em um quarto de hotel no Recife quando, desfazendo as malas, Luíza apresenta seu plano secreto, muito bem executado – segundo achava –, ao marido:

– Olha, meu amor, a gente vai fazer o seguinte. Só para depois de amanhã está agendada a visita ao museu. O grupo vai ficar por aí, aproveitar uma praia e tal e nos reuniremos só na terça bem cedo para irmos ao instituto. E eu preparei uma surpresa para você. Alguma coisa só para nós. Amanhã iremos só os dois a um passeio. Já preparei tudo. Não alugaremos carro. Fique tranquilo. Comprei um passeio de táxi. Já está tudo certo. Cedinho, partimos para a Ilha de Itamaracá, a apenas uma hora daqui. Ah… Eu acho que a gente merece. Não é?

Quando Luíza aprenderia o significado de um não? Nunca, talvez – pensava Heitor. A princípio, ali, por alguns segundos, ele quis discutir. Depois, porém, achou mais pacífico render-se:

continua… 
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