Quando entramos em grupos de discussões de filmes ou vemos pessoas fazendo críticas no youtube ou em texto é comum esbarrarmos em determinadas regras que são tão repetidas e que se transformam em verdades. São diversas coisas: “qualquer forma de jumpscare é ruim”, “se a atuação não é excelente então o filme não presta”, “se o efeito especial não for bom então é melhor nem fazer” e por aí vai. Como essas são afirmações fortes e que parecem fazer bastante sentido, é comum que nós acabemos recorrendo a elas para provar um ponto. Talvez eu mesmo tenha soltado algumas delas nas diversas críticas que já escrevi. De todas essas regras que são “quase verdades” acho que a que mais vi sendo repetida foi “o roteiro é a coisa mais importante de qualquer filme”. Talvez ela seja tão repetida porque é a que mais parece uma verdade absoluta à primeira vista. Como que um filme, algo que se propõe a contar uma história, não teria a história em si como o elemento fundamental?

Não existe dúvida de que o roteiro é um elemento fundamental de um bom filme. Eu não seria louco de dizer que a base de um filme não é importante. Entretanto, a reflexão que tento trazer aqui é: será que a forma de contar uma história não é tão importante quanto? Pense que você está lendo uma história para uma criança dormir. Vamos supor que é “Chapeuzinho Vermelho” a história em questão. Você já leu essa história infinitas vezes ao longo de sua vida. Sua opção de ler “Chapeuzinho Vermelho” pode seguir por dois caminhos. Ou você lê de forma monótona e chata porque já conhece cada detalhe da trama, ou você lê dando peso a cada palavra e criando suspense conforme o andamento dos fatos.

Talvez seja por isso mesmo que valorizamos tanto a figura do diretor e da diretora quando falamos de cinema. São justamente eles que contam a história, mesmo que não as escrevam. Às vezes reclamamos do final de um filme ou de determinada fala, mas isso não necessariamente é culpa do diretor, e sim do roteiro. A figura do roteirista por vezes fica oculta diante de um grande diretor. Isso é um enorme paradoxo. Dizemos que o roteiro é a coisa mais importante de um filme, por outro lado dizemos também que o diretor é a pessoa mais importante na produção de um longa, mesmo sabendo que muitas vezes não é ele quem escreve o roteiro.

Remakes podem ser um bom exemplo disso. Como conseguimos ver o mesmo filme sendo recontado e não gostar? Provavelmente o segredo está em como ele foi contado. “Vingador do Futuro”, “Ben-Hur” e até mesmo o recente It são ótimos exemplos de como a forma de contar a história é mais importante do que a história em si. Quando estamos falando de cinema precisamos lembrar que um roteiro, até ser efetivamente filmado, não significa muita coisa. É diferente de um livro que é escrito de forma autossuficiente. O roteiro demanda de um olhar diferenciado, pois ele está no estágio do “ainda vai ser”. Onde colocaremos a câmera nesta cena? Como essa frase precisa ser dita? Talvez o exemplo para ser colocado num pedestal seja o remake de Psicose, feita em 1998 pelo diretor Gus Van Sant, que é um fracasso retumbante mesmo com o diretor tentando emular cada passo do filme original de Alfred Hitchcock. A franquia mais famosa do mundo também pode entrar nesta ideia. Star Wars, segundo o próprio George Lucas, tem seu universo criado através de um compilado de diversas outras obras que ele sempre admirou ao longo de sua vida, enquanto vários elementos de roteiro são conceitos das mitologias clássicas que se repetem ao longo da história desde sempre, como “o mago sábio”, “o guerreiro destinado a portar a arma sagrada” e “o vilão que é a síntese do mal”.

Publicidade

Ainda podemos caminhar por outros exemplos, como filmes que realmente não se propõem a contar uma história, como o “Sonhos” do magistral Kurosawa, que tenta mostrar uma sequência de sonhos que o diretor tinha quando criança. “Fantasia”, por sua vez, propõe-se a ser uma apresentação de balé feita em animação, que levaria a música clássica para o cinema, onde a narrativa era totalmente secundária. Existe toda uma vertente de cinema abstrato que mostra sequências de imagens desconexas que tentam emular a sensação de sonhar ou a psicodelia pura, como coisas feitas por David Lynch. Os musicais também flertam com um pouco dessa questão. Nesses filmes o mais importante são as músicas e os números de dança que elas geram, obvio que elas acontecem segundo uma história, mas lá no fundo ela só é um pano de fundo para a música.

Isso porque nem comecei a falar de filmes que claramente não possuem uma boa história, mas nós amamos mesmo assim. Todo mundo coleciona alguns títulos assim, aqueles prazeres culpados, pois sabemos que determinada obra é de baixíssima qualidade. Os anos 80 foram uma década próspera em coisas desse tipo, que com o passar do tempo foram se tornado cults. Às vezes não queremos ver uma boa história, e sim aquela mesma história de sempre. Lá no fundo existe certo prazer em ver o que já é conhecido e nos é familiar. Uma reviravolta ou inversão é muito bem vinda, mas nem sempre. Às vezes só queremos ouvir a história da Chapeuzinho Vermelho mais uma vez.

Grandes filmes da história ficaram marcados no imaginário popular por terem revolucionado no que diz respeito à história, mas justamente ficaram tão marcados que se tornaram clichês.  Um caso, bastante recente até, é o Sexto Sentido. O final deste filme é certamente icônico, mas tente fazer um final semelhante hoje em dia. Um bom roteiro pode colocar um longa nos patamares mais elevados da cinematografia, mas sem um bom diretor, atores, diretores de fotografia e técnicos de todos os tipos, ele será só um roteiro com bom potencial. O cinema é uma arte coletiva que demanda diversas mentes trabalhando juntas. Talvez seja de fato o roteirista, ou roteiristas, que dão razão para que todas essas pessoas trabalhem em conjunto, mas certamente serão guiadas e sincronizadas pelo diretor. Talvez uma boa analogia seja pensar que o roteiro é como uma receita, ela pode ser uma excelente receita, mas se não tivermos um bom cozinheiro para fazê-la acontecer, ela só continua sendo um pedaço de papel com coisas escritas nele.  

Publicidade
Share.
Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

Exit mobile version