Animais Noturnos é um suspense psicológico que não só instiga a capacidade do espectador, como também necessita dessa mesma capacidade para que a experiência de assistir o filme dirigido por Tom Ford seja aproveitada por completo. Dentro de um estilo neo-noir, o filme busca criar o clima de tensão no prisma de três perspectivas: a de Edward (escritor), Tony (personagem) e de Susan (leitora). Conseguindo grande êxito diante de toda a dificuldade narrativa que o filme se propõe.

Escrito, dirigido e co-produzido por Tom Ford, um ex-estilista de sucesso da Gucci que também é um diretor com ótimo potencial, Animais Noturnos adapta o romance de 1993 escrito por Austin Wright, intitulado de Tony and Susan. O filme é estruturado de maneira interessante, onde o ponto de partida se dá quando Susan (Amy Adams), uma espécie de socialite marchant de obras de arte, recebe em primeira mão o manuscrito do novo livro de Edward Sheffield (Jake Gyllenhaal), Animais Noturnos. Edward dedicou esse livro à Susan, sua ex-mulher, a qual não falava desde a separação, há anos. Curiosa em saber tal merecimento, Susan que vive uma crise financeira e conjugal, passa a ler as páginas do livro e adentrar no drama e terror vivido por Tony Hasting protagonista do livro (interpretado também por Jake). Mobilizada a cada capítulo, Susan não só se identifica com a história, como também com Sheffield que fora abandonado por ela de forma devastadora no passado.

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Animais Noturnos é composto por três dinâmicas diferentes que levam a uma proposta que talvez seja a mais importante de qualquer produção: identificação. E essa identificação ocorre em vários níveis. O filme acompanha Susan vivenciando a leitura dos originais do livro em suas noites em claro. Neste momento uma outra dinâmica se mostra ao espectador, a história do livro em si. Acompanhamos o drama de Tony e sua família, vítimas de uma violência e trauma absurdamente revoltantes. A terceira dinâmica são os flashbacks que Susan tem ao lembrar de seu relacionamento com Edward e de tudo o que eles passaram juntos, a curta e forte paixão e a traumática separação. Sabendo que Edward sempre escreveu sobre ele mesmo, Susan passa a empatizar também pelas alegorias sombrias no livro que traduzem o que seu ex-marido possa ter sofrido na vida real e sua própria e atual depressão.

Um filme de várias camadas, porém tudo isso não fica escancarado ao espectador, exigindo um nível surpreendente de interpretação do mesmo para um filme hollywoodiano. Animais Noturnos aposta em seu público, isso é extremamente agradável para quem gosta de pensar sobre cada take do filme e tirar suas próprias conclusões do que aquilo significa. O que nos leva novamente a Tom Ford, que conseguiu o seu segundo trabalho como diretor após ter escrito esse roteiro bem intrincado de uma forma extremamente mental. As conexões acontecem na cabeça do espectador, porém os elementos para tais conexões estão ali, aos nossos olhos. Isso pode ser um problema para quem não curte muito essa proposta ou esse estilo de drama, porém, para estas pessoas, existem outros filmes. 

As atuações estão excelentes, ressaltando a qualidade dos atores e do diretor em saber o que cada um pode lhe entregar. Michael Shannon está muito bem como o Detetive Bobby Andes (concorrendo ao Oscar 2017 de melhor ator coadjuvante), Gyllenhaal mais uma vez não decepciona em um papel mais profundo, Amy Adams, competente como de costume, entrega uma personagem com camadas mesmo com poucas falas e Aaron Taylor-Johnson que não compromete no papel de Ray. Porém nesse filme quem brilha mais fortemente é o roteiro, conseguindo não só enredar cada sequência, dando um duplo ou triplo significado para aquilo, como também consegue somar cada interpretação e conexão do espectador para o clímax no final do filme. Um clímax mental. A identificação ocorre em vários níveis, finalizando na angústia do “encontro” no restaurante. Assim como Susan não obtém uma materialidade sobre a persona de Edward, de saber como o homem que despertara novamente seu lado vívido durante a leitura está depois de tantos anos e tantos traumas, nós, espectadores, ficamos com esse mesmo sentimento de angústia no fim.

Como esse filme não é tão novo, permitir-me-ei dois parágrafos com spoiler afim de compartilhar minha interpretação da história. Então se você não quiser ler algumas revelações sobre o enredo, pule para o dois parágrafos abaixo, mas essa leitura pode ser uma boa pedida para você que não entendeu bem Animais Noturnos ou se você quiser comparar sua interpretação com a minha. Farei algo apenas para explicar o cerne principal da história.

Primeiramente vamos às pistas durante os flashbacks que nos darão margem para interpretar a história. Sabemos que há uma dualidade em Susan, apesar de ter uma alma viva e apaixonante quando reencontrou Edward no passado, ela possuía os olhos tristes da mãe. Essa mesma dualidade que a mãe ressalta a ela durante a conversa sobre se casar com Edward. Percebemos que, após o casamento, no lugar da vívida Susan aparece uma mulher mais pessimista e pragmática como sua mãe, que não dorme à noite, que se preocupa com seu futuro e com a fraqueza e romantismo de de seu marido que ainda sonha em ser um grande escritor, apesar dos desestímulos que a mesma provoca a esse sonho. Susan fala que os livros não são bons pois não deveriam falar dele próprio. Edward contra-argumenta dizendo que é isto o que o escritor faz, falar de si mesmo. Edward apelida esse lado “sombrio” de Susan de Animal Noturno (o título do livro). Pouco tempo depois, Susan se separa de uma forma unilateral de Edward após ter conhecido Hutton, seu atual marido, e juntos foram abortar a gravidez que Susan carregava de seu ex. Assumindo de vez seu lado “Animal Noturno” o qual sua própria mãe já alertara. Edward descobre. Após 19 anos deste ocorrido chega o manuscrito de Animais Noturnos às mãos de Susan. Com dizeres de agradecimento e de que agora ela iria gostar de seu livro.

No livro, Tony (uma alegoria do próprio Edward) durante uma viagem de carro, tem sua mulher e filha raptadas, violentadas e assassinadas por um bando de arruaceiros que vagavam à noite na estrada. Tony é sempre representado como um homem fraco, que não reagiu em nenhum momento de uma forma mais forte para evitar que estas coisas acontecessem. Fatos que lhe atormentam não só pela brutalidade que suas amadas sofreram, mas também por ter sido fraco. Aqui faremos a conexão que vai nortear todo o filme, as alegorias do livro e suas representatividades. A esposa de Tony representa a Susan a qual ele era apaixonado, sua filha representa a filha que eles não tiveram devido ao aborto, e os vândalos assassinos são os “animais noturnos” do livro e representam a outra face da dualidade de Susan, a “animal noturna”, sua sombra. Ou seja, o livro mostra claramente a Susan o que ela significou para Edward, o grande trauma que, por sua própria fraqueza, tomou sua amada esposa e filha, atormentando-o durante anos, talvez até à presente data do recebimento do livro.

Fim dos spoilers, a partir daqui deixarei cada um com sua interpretação do resto das coisas como: Quem era o detetive Bobby Andes? O que aconteceu com Edward? Se quiser debater sobre isso ou outras coisas, deixe nos comentários.

Um excelente filme que prioriza mais as conexões e interpretações mentais do espectador do que uma explicação banal. Confiando na capacidade de quem o assiste, porém dando os elementos necessários para que tudo faça sentido. Eleva o processo de identificação a outro nível, acontecendo de forma multilateral: entre personagem e personagem, espectador e protagonista, espectador e livro… O mais interessante é a própria sombra de angústia que todos esses agentes sentem. Animais Noturnos pode contar com algumas criticas daqueles que necessitam de uma maior materialidade dos elementos do filme, porém, e ainda bem, no cinema há espaço para todos.

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Daniel Gustavo

O destino é inexorável.

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