Em uma das cenas de Bohemian Rhapsody, filme sobre a ascenção da banda Queen e Freddie Mercury, o lendário vocalista, em uma reunião entre família e a recente formada banda, deixa bem claro que o comum não era o suficiente. Ele queria ser mais, fora dos limites que seu pai, e a própria vida lhe impunham. Queria seu reinado dentro dos desajustados, assim como ele. A audácia era um sentimento que não faltava à Freddie e a banda Queen no sentido musical, o filme dirigido por Bryan Singer e posteriormente por Dexter Fletcher, abordam tal ousadia no longa, contando com excelente produção, mixagem de som (trazendo uma boa experiência musical ao filme), e uma estupenda interpretação de Rami Malek (que compensa sua pouca semelhança com o líder do Queen). Porém não vemos a mesma audácia na narrativa do filme que comete suas imperfeições com a realidade cronológica para trazer uma fórmula padrão cinematográfica.

Freddie Mercury (Rami Malek) e seus companheiros Brian May (Gwilyn Lee), Roger Taylor (Ben Hardy) e John Deacon (Joseph Mazzello) mudam o mundo da música para sempre ao formar a banda Queen, durante a década de 1970. Porém, quando o estilo de vida extravagante de Mercury começa a sair do controle, a banda tem que enfrentar o desafio de conciliar a fama e o sucesso com suas vidas pessoais cada vez mais complicadas. Um dos pontos positivos do filme é tratar essa extravagancia de Freddie de um jeito delicado. A relação com sua primeira esposa e a forma narrativa que a música “Love of my Life” aborda tal sentimento é dolorido e sutil para exprimir um sentimento tão complicado. Freddie era um homem extravagante, criativo, porém solitário, que se apegava à sua esposa mais como um porto seguro para aonde poderia voltar depois de suas turnês e aventuras do que propriamente sua amante. E, em dado momento do filme, quando eles se separam, Freddie sente o vazio e tenta preenchê-lo com festas e reuniões que pouco tinham o abrigo que ele necessitava. E esse vazio tinha muito a ver com suas próprias escolhas.

Seu próprio nome artístico é um rompimento com suas origens. Vindo de uma família de imigrantes oriundos da Tanzânia (antiga Zanzibar), com um pai que tentava reprimir os desejos audaciosos do filho, Farrokh Bulsara, queria a arte em sua vida e também em seu nome, rebatizando-se de Freddie Mercury após entrar na antiga banda Smile, criando assim o Queen. Considerada por muitos a maior banda de todos os tempos por sua originalidade, experimentalismo, qualidade musical e o grande carisma de seu vocalista, o audacioso Freddie Mercury, que,  apesar de terem uma relação interessantemente tortuosa, dava asas à criatividade de seus companheiros de banda.

A relação entre eles é estabelecida no primeiro ato do filme. Com muita química musical e muito atrito pessoal. Não só o talento mas também o ímpeto de não querer ser mais uma banda qualquer do cenário pop, davam a eles a chama de criarem fora dos padrões. O processo criativo da banda é um dos melhores momentos do filme, a música título do filme ganha maior destaque, e não é por menos, Bohemian Rhapsody é um amálgama de toda a excentricidade da banda em forma de música. Porém sente-se falta desse processo em outras músicas no filme. As músicas marcantes do Queen marcam presença na trilha sonora, porém sublinhando muito mais alguns momentos vividos pelo Freddie do que valorizando o processo criativo ou como tais músicas influenciaram o mundo pop da época, apesar de mostrarem cenas deliciosas de negociação com o produtor da EMI vivido por Mike Myers. Confesso que senti falta de mostrarem como as músicas da banda penetravam em seu público, e como era, em si, o seu público. Em uma cena do filme é conversado com o produtor da banda que Queen queria atender ao seu público, aqueles que ficavam no fundo da sala, os desajustados. Porém vemos pouco disso no longa.

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Um defeito que realmente incomoda qualquer fã da banda é a questão das diferenças cronológicas dos acontecimentos da história do filme comparados com a vida real de Freddie Mercury. Fatos são colocados em datas e momentos ao bel prazer do roteirista para que ele construa seus arcos narrativos. Exemplo disso é o show no Rio que no filme acontece 7 anos antes do que o verdadeiro. A música “We Will Rock You” tem seu lançamento anos depois do que aconteceu na vida real. Porém a diferença mais impactante foi quando Freddy descobre que contraíra a AIDS, que aconteceu em 1987 na vida real, porém no filme é antecipado para antes do evento Live Aid, em 1985, para dar a curva dramática à trama e ao grande ato final. Bem, é decerto que essas manipulações da realidade incomoda, até aquele espectador que só pesquisa após o filme, mas é compreensível tal recurso para deixar a história dentro do formato cinematográfico. É um defeito que não condena o filme, até porque seria o mesmo que condenar Coração Valente, de Mel Gibson, por seus erros históricos. Na realidade o que mais incomodou foi o formato padrão da narrativa do filme, “ascensão, queda e renascimento”. Uma rotina básica que não está à altura de toda a criatividade e rompimento dos padrões que Freddie Mercury e a banda Queen executavam em suas obras.

Entre altos e baixos, há de se bater palmas para o trabalho de Rami Malek em um dos papéis mais desafiadores da história recente do cinema. É fato que Freddie Mercury era uma persona inimitável, tanto pela excentricidade quanto pela imprevisibilidade do cantor nos shows e na vida por detrás dos palcos. Rami fez um trabalho complexo, que com certeza perdeu muitas noites de seu sono, e entregou algo realmente crível na pele de Mercury, mesmo sem ser muito parecido fisionomicamente com o frontman da banda. O elenco em si ficou ótimo, Bryan, Roger e Deacon estão bem representados e muito parecidos com os verdadeiros. Isso foi fundamental para salvar uma produção tão problemática, já que Bryan Singer foi demitido da direção faltando 16 dias para o encerramento das gravações devido a problemas de abusos no set. A própria escolha de Malek como protagonista é oriunda de desavenças de Sacha Baron Cohen, que originalmente interpretaria o Freddie, com os próprios Bryan May e Roger Taylor que atuaram como produtores executivos no longa.

Enfim, com tudo isso à mesa, até que Bohemian Rhapsody entregou algo acima das expectativas. Sem se ausentar em pontuar naturalmente a sexualidade de Mercury, mas com a devida delicadeza a fim de deixar os julgamentos para os próprios espectadores. E no fim, a sequencia do Live Aid, foi algo maravilhoso, para deixar todos na sala empolgados por tamanha vibração e performance da banda sendo reproduzidas pelos atores. Uma boa diversão e uma bela homenagem, mas que ainda não está à altura de Freddie Mercury e a banda Queen.

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Daniel Gustavo

O destino é inexorável.

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