A ideia de centralizar uma história em cima de um vilão não é novidade nos quadrinhos. Muitos deles já tiveram, e ainda têm seus próprios títulos mensais com relativos graus de sucesso e relevância. O próprio Coringa foi o primeiro a inaugurar essa abordagem em seu título mensal que teve uma curta duração e voltado para uma veia cômica. Muito mais tarde ele ganha uma graphic novel solo com roteiro de Brian Azzarello e arte de Lee Bermejo. Ambos materiais foram publicados no Brasil assim como a icônica HQ Piada Mortal que de certa forma coloca o vilão no centro da narrativa ao dar uma das várias versões de sua origem. Portanto era de se esperar que se um vilão fosse estrear seu filme solo este deveria ser o Coringa. Não só pelo histórico, mas pela incrível popularidade do personagem sendo talvez o maior vilão do universo de super-heróis da cultura pop. Alguns podem argumentar que Esquadrão Suicida foi o primeiro a fazer isso, ou até mesmo o longa da Mulher Gato, mas acredito que ambos não contem. O primeiro porque ele grita o tempo todo que é um filme sobre vilões, mas a verdade é que em nenhum momento isso se com concretiza na trama enquanto o segundo reformula a personagem para um tom heroico.

A sinopse é simples: Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um homem com problemas mentais que sofre no dia a dia tentando trabalhar como palhaço, almejando uma carreira no stand-up, enquanto tenta cuidar de sua mãe idosa e de saúde debilitada. Conforme sua vida vai saindo dos eixos sua instabilidade mental toma um rumo crescente até o caos completo.

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Esse é um filme de estudo de personagem onde tudo gira em torno da psique do protagonista e como ele lida com o mundo a sua volta. Não pense nesse filme como “um filme de origem do Coringa” e, se quiser, até ignore que esse é o Coringa. Talvez nada disso realmente importe. O que importa é entender quem é esse homem instável e como ele é levado a loucura. É discutir a relação homem VS ambiente e como uma sociedade pode criar seus próprios monstros. Ou será que eles já existem e são potencializados pelo mundo cruel que vivemos? Esse nem precisava ser um filme do Coringa propriamente dito, mas usa esse pano de fundo para discutir a violência urbana, a desigualdade social e a saúde mental como problema de saúde público. Talvez o filme mais audacioso e complexo do universo de super-heróis já feito.

Aos que esperavam muita coisa retirada dos quadrinhos para a tela fica o aviso: não espere isso. O filme quase que cria uma história completamente do zero sem usar quase nenhuma referência previa da mídia original. Alguns podem apontar isso como um defeito, mas acredito que é perfeito para a proposta dessa obra e também liberta o cinema de estar sempre adaptando um arco especifico de histórias. Coloca o leitor de HQ e o fã de cinema no mesmo patamar em relação à obra que estão assistindo.

Um defeito/qualidade da obra (depende de como você encara) é que ele se assemelha MUITO ao início de Taxi Driver e quase que está contando a mesma história em parte do seu primeiro ato. Mas quando o roteiro e direção se libertam dessa influência o filme decola para a estratosfera. A direção de Todd Phillips é soberba e surpreendente tendo em vista que sua carreira como diretor é composta da trilogia Se Beber Não Case e outras comédias. O roteiro é assinado por ele e seu parceiro de trabalho Scott Silver que assinou o roteiro de 8 Mile: Rua das Ilusões e O Vencedor. Talvez o único defeito a se apontar neste lado mais técnico do filme seja a trilha sonora que por vezes é pouco discreta em momentos que deveria ser e assinalada demais, como se forçasse um pouco para que momentos fiquem mais tensos ou importantes sem necessidade.

A atuação de Joaquin Phoenix é tudo que se espera dele, como o grande ator que é, e do personagem Coringa que ficou marcado por grandes atuações. Tudo nele é perfeito. A risada, o físico (onde vemos que claramente o ator passou por uma transformação real e tenebrosa) e o gestual. Chega a ser surreal como essa atuação é poderosa e marcante. Claro que isso tudo é atingindo graças a um roteiro primoroso com falas incríveis, mas sem a atuação de Phoenix esse seria um filme impossível de ser feito, pois iria requerer o ator perfeito, mas por sorte eles o tinham.

A coisa mais inteligente na produção deste longa foi estabelecê-lo de forma isolado de todo o universo cinematográfico da DC. Essa é uma história que não necessita de conexões extras ou até mesmo de uma continuação. Ela se fecha em si mesma como um arco de desenvolvimento de personagem. Isso permite não só uma liberdade dos eventos da história como reinterpretar tudo do universo do Batman e de Gotham City sem se preocupar como isso afetará outras produções. É um filme que pode se esperar de tudo, já que de fato tudo é possível.

Esse é um drama e um filme sobre criminalidade. Retrata de forma angustiante a doença mental, mas não a colocando como causadora do mal. Este é um filme político que quer passar uma mensagem e uma crítica de forma clara e sem subjetivismos. Isso talvez incomode, mas certamente vai levantar o debate entre aqueles que assistem. A parte mais interessante de se falar sobre o filme não cabe a essa critica, pois não posso me aprofundar demais sem revelar viradas da trama. A graça mora em mergulhar nesses debates. Esse é um Coringa diferente de tudo que já foi feito no cinema e até mesmo nos quadrinhos. Nunca antes o personagem foi interpretado (tanto pelo ator quanto pela história) desta forma ousada. Esse filme está ai para competir com tudo. Competir pelo melhor filme da DC, do universo de quadrinhos e até mesmo com os próprios quadrinhos, já que ele supera muitos.

Coringa é tudo o que se espera dele e um pouco mais. Um filme digno do Palhaço do Crime.

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Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

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