Em seis de agosto de 1945 o mundo mudou completamente. Quando as primeiras bombas atômicas explodiram no Japão os paradigmas da humanidade foram virados de cabeça pra baixo: Os raios da morte, típicos de histórias em quadrinhos, agora não pareciam tão absurdos e era possível, sim, exterminar uma cidade inteira em segundos. Muitos pensavam que o Japão não se ergueria dos destroços da segunda guerra mundial, mas superando muitas expectativas assim o fez, e a vida seguiu. Obviamente que as memórias da guerra eram extremamente vivas e marcaram aquele povo profundamente. Toda vez que um grupo cultural sofre uma experiência coletiva desta proporção isso se reflete diretamente na cultura, e em 1954, pouquíssimos anos depois, temos um dos maiores reflexos diretos sobre a explosão da bomba. Temos muitos filmes de mestres do cinema japonês que refletem de forma realista a guerra, mas o longa de Gojira se propõe a pensar de forma extrapolada os horrores que o país sofrera.

Devido a radiação da nova era nuclear um pequeno lagarto se transformou num mostro gigantesco. Gojira é uma amalgama de duas palavras japonesas gorila (ゴリラ) e baleia (クジラ) que tenta traduzir o conceito visual do mostro criado para o cinema. A baleia reflete a enormidade do mostro que surge da água e o gorila, por sua vez, a força e destruição.

Hoje esse filme seria classificado como “cinema catástrofe”, mas naquela época esse conceito nem existia, era uma mistura de ficção cientifica com terror, incomum para a época. A ficção cientifica era ainda incipiente no cinema, e os poucos longas que existiam do gênero eram de péssima qualidade e considerado cinema de quinta categoria. O terror pelo outro lado estava muito em alta nos Estados Unidos com os clássicos da Universal, que logo serão citados nessa coluna. Gojira foi uma revolução no cinema, mesmo que por muito tempo o cinema ocidental tenha tentado renegar essa revolução. Muito se deve pelos efeitos práticos. Como fazer um mostro gigantesco destruindo uma cidade inteira em 1954? Hoje, a ideia de colocar um cara vestido de monstro destruindo uma maquete pode parecer idiota, mas graças a direção de Ishirô Honda (também responsável pelo roteiro) todo o cinema que se baseava em efeitos especiais sofreu uma enorme mudança de paradigma. Agora era possível destruir uma cidade inteira em uma cena, assim como a bomba havia feito no mundo real.

Mas para onde esse filme vai? Qual seu propósito? Obviamente que não é uma hora e trinta e seis minutos de pura destruição gratuita. Toda a movimentação da história está em como derrotar tal criatura, salvar o Japão, mas a questão é, como? Um grupo de cientista formulam muitos planos para parar a onda de destruição e a única solução encontrada é uma bomba, tão poderosa quanto a lançada no Japão, mas o criador da arma se recusa a usá-la depois que viu o potencial da energia nuclear. O grande dilema vai gradativamente mudando de “mostro gigante verde destruidor”, para “devemos usar a mesma arma que foi usada contra nós e criou esse problema todo?”. Um plot simples, mas cheio de significado.

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O cinema oriental por muitas vezes é ignorado, mas quando cai na vista do ocidental é copiado a exaustão. Gojira e os 7 Samurais são o exemplo clássico de como tudo isso começou: Mais do que um clássico do cinema de terror/ficção cientifica, um retrato de seu templo, o medo de um povo transformado em narrativa visual na película. Ignore aqueles que dizem que é apenas um filme de monstro e que não é cinema de verdade. Esta é uma obra prima que não é reverenciada junto aos grandes clássicos ocidentais e merece seu lugar ao lado das grandes obras.

Infelizmente esse conceito foi se perdendo e diversos outros filmes péssimos foram feitos com o monstro. Ele acabou se transformando em só mais um filme como as outras coisa genéricas que surgiram depois do original de 1954. Obviamente que os Estados Unidos, onde se transformou em Godzilla (algo como Deus Lagarto), logo foram copiar a obra e fracassaram de forma retumbante. De tempos em tempos Gojira reaparece nas telas em uma nova roupagem para os novos tempos, mas nenhum deles bate o clássico.

 

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Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

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