Passando por 1984 até Jogos Vorazes, a distopia é um segmento que vem ganhando força ao longo dos anos na literatura com cenários opressores e de desesperança. Sendo assim, é inusitado quando encontramos justamente o contrário: uma utopia na qual a humanidade atingiu o nível mais alto de evolução política, social e econômica, chegando ao pondo de vencer a própria morte. Esse é o caso de O Ceifador, volume I da série Scythe, escrita pelo americano Neal Shusterman.
A trama nos apresenta um mundo perfeito, sem doenças, guerras, pobreza e mortes. Até mesmo o envelhecimento pode ser revertido de modo que o conceito de idade tornou-se ultrapassado. Os governos e partidos deixaram de existir e, agora, a Terra é administrada de maneira justa pela inteligência artificial Nimbo-Cúmulo. Entretanto, mesmo com tantos avanços, o Planeta não pode comportar uma população que apenas cresce. Assim, surgiu a Ceifa, um grupo independente da Nimbo-Cúmulo cuja missão é coletar a vida de algumas pessoas para manter o equilíbrio populacional. Nesse contexto, dois jovens, Citra e Rowan, são escolhidos como aprendizes do ceifador Faraday para aprenderem o ofício de matar. Contudo, falhar nesse treinamento ou deixar os sentimentos um pelo outro falarem mais alto pode colocar a vida de ambos em risco.
Pela sinopse, podemos subentender que em algum momento um romance entre os protagonistas irá movimentar toda a história. Isso tiraria parte do mérito da narrativa por ser um tanto clichê. Porém, a forma como esse romantismo aparece o coloca em segundo plano. O relacionamento de Citra e Rowan é velado, sendo mais uma cumplicidade do que algo romântico. Independentemente de sentimento, apenas um será escolhido como ceifador, então eles mantêm um objetivo em mente, o que dá outros aspectos bem mais interessantes à obra.
Um desses aspectos é o ideal de cada um dos ceifadores. Os fundadores da organização possuíam princípios morais que, ao longo dos anos, foram se perdendo. Coletar vidas, por mais necessário que fosse, nunca deveria ser algo fácil. Mas alguns membros da Ceifa veem essa tarefa como um esporte prazeroso, além de símbolo de status. Só por isso já percebemos que, quando se trata de disputa de egos, o grau de evolução não faz diferença pois é da natureza humana esse instinto competitivo e predatório.
Outro ponto relevante por trás da ficção está nas reflexões feitas por alguns personagens sobre o significado prático de ser imortal. O que fazer quando já se atingiu o nível mais alto? Ou quando tudo que se poderia almejar já foi conquistado? Muitas pessoas ficam estagnadas, sem objetivos a longo prazo pois sempre podem “deixar para amanhã”. Na época em que existia a morte, até a arte era mais intensa, já que por trás de cada trabalho havia a consciência de finitude das coisas.
– Você sente um pouco… mas é apenas uma sombra do que poderia sentir. Sem a ameaça do sofrimento, não temos como sentir a verdadeira alegria. O melhor que podemos conseguir é uma vida agradável.” (p. 250)
Entre reflexões, conspirações e suspense, a narração flui facilmente até o seu desfecho. As páginas passam rápido e, quando notamos, estamos surpresos com os acontecimentos. Apesar de ser o primeiro livro de uma série, o final é conclusivo. Possivelmente, nos volumes seguintes veremos as consequências do que ocorreu e como novos problemas irão surgir. E, segundo o próprio Neal Shusterman diz nos agradecimentos, em breve poderemos ver a Ceifa em ação nos cinemas.
Assim, O Ceifador se mostra um dos melhores lançamentos de 2017, com uma trama que prende o leitor pela simplicidade com a qual é escrita e pela originalidade da história. Por mais que uma utopia pareça perfeita, alguém nos bastidores precisa abdicar algo para manter essa perfeição.
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