É inegável como a cultura cyberpunk influenciou diversas obras em variadas mídias. Desde seu nascimento, no livro Neuromancer, seu desenvolvimento, em Blade Runner, e sua consagração, em Matrix. Diversas outras obras foram e ainda são produzidas nessa temática em que o avanço tecnológico vem antes do desenvolvimento social e humano. E uma destas grandes obras dentro desta vertente é o mangá/anime Ghost in the Shell, que marcou época no fim dos anos 90 e início dos aos 2000 com sua pegada de ação e, principalmente, o debate filosófico gerado em cima de questionamentos dessa realidade extremada, onde os seres humanos podem acessar extensas redes de informações com seu cyber-cérebros.

Major Motoko Kusanagi é a líder da unidade de serviço secreto Esquadrão Shell, responsável por combater o crime. Motoko foi tão modificada que quase todo seu corpo já é robótico. De humano só teria sobrado um fantasma de si mesma presa em tal corpo cibernético. Daí vem a ideia do título do anime, “Ghost in the Shell”, traduzindo, “Fantasma na Concha ou Casca”. Com a responsabilidade de adaptar esse clássico anime, A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell acerta em dar vida ao mundo pós 2029 e inserir o conceito tecnológico nele, onde é difícil achar um ser humano que não seja aperfeiçoado a partir de inserções cibernéticas. Porém a produção dirigida por Rupert Sanders deixa a desejar na difícil missão de apresentar um tom reflexivo e filosófico condizente com o referenciado anime, focando numa visão mais ocidental da jornada pessoal da Major Mira Killian (Scarlett Johansson), a Motoko do anime.

O roteiro se inspira na trama do primeiro anime de 1995. Major Mira teve seu cérebro transplantado para um corpo inteiramente construído pela Hanka Corporation. Considerada o futuro da empresa, Major logo é inserida no Section 9, um departamento da polícia local. Lá ela passa a combater o crime, sob o comando de Aramaki (Takeshi Kitano) e tendo Batou (Pilou Asbaek) como parceiro. Só que, em meio à investigação sobre o assassinato de executivos da própria Hanka, Major começa a perceber certas falhas em sua programação que a fazem ter vislumbres do passado quando era inteiramente humana.

Partindo desta sinopse vamos às análises. Primeiramente o mundo criado para A Vigilante do Amanhã acertou em cheio como uma adaptação cinematográfica de Niihama do anime, principalmente na questão do mundo altamente tecnológico dominado por propagandas e empresas. E percebemos isso nas várias tomadas que temos pela cidade. Sejam elas aéreas ou nas ruas. Observamos os vários e enormes hologramas publicitários entre os prédios da cidade, numa perfeita tradução ao anime. Até nas cenas em que os personagens caminham pelas ruas, percebemos conceitos clássicos de cyberpunk, vários transeuntes aperfeiçoados pela tecnologia andando pelas calçadas ou habitando as boates. Um tinha capacete tecnológico, outro tinha um braços ou pernas mecânicas, e não para por aí. A Vigilante do Amanhã constrói bem a fusão do ser humano com a máquina, com personagens com fígado sintético para beber sem preocupações, entradas cerebrais para acessar informações e sensações dentro da rede, e substituição dos olhos naturais por olhos táticos com zoom e visão de raio X. O incomum é achar um ser 100% humano, o que nos levará para o plot da Major Mira.

Major se sente um peixe fora d’água em diversos aspectos. É difícil se formular como um ser humano quando se sabe que apenas o seu cérebro está ali, o resto é artificial e sintético. Enquanto há discussões sobre inserções tecnológicas entre seus companheiros e de quanto de ser humano sobrou em cada um, ela é desmontada e remontada a cada dano sofrido em combate, criando nela um incômodo por não ser igual aos outros. Ela está sozinha. O primeiro ser perfeito: o melhor do humano (cérebro) e o melhor da tecnologia (corpo). Porém sem uma identidade própria. Essa é a maior questão filosófica abordada no filme, interessante, porém ainda aquém de toda reflexão imposta na sua obra original japonesa. A partir dessa questão de entender a si mesma e dar-se um sentido, todo o plot do filme é fundamentado. E Kuse (Michael Pitt), o ciborgue terrorista, está na história para dar ainda mais construção a esses questionamentos. E isso é um dos defeitos do filme.

Kuse, um hacker cibernético que está em todos os lugares ao mesmo tempo, é um vilão que aparentava proporcionar um grande risco não só à Major, mas a todo o funcionamento da Hanka Corporation, abalando assim as diretrizes governamentais e corporativas desta realidade. Porém, ao longo do filme, o personagem se limita a desenvolver a Major e toda sua crise existencial, funcionando mais como um peão da narrativa. Tirando assim a periculosidade e o sentido de urgência do filme. Ok, a proposta original do Ghost in The Shell é ser um lance mais mental e reflexivo do que somente ação e explosões na cara do espectador, mas o lance mental também não ocorre satisfatoriamente na adaptação. Ficando entre o meio termo da proposta ocidental (ação sem grandes reflexões; um clímax mais visual) e da oriental (reflexões sem grandes explosões; um clímax mais mental), fazendo com que A Vigilante do Amanhã seja um filme morno.

O longa soube referenciar bem o anime, com muitas cenas conceituais e tomadas idênticas às cenas icônicas da produção japonesa. Inclusive a sequencia da Major Mira embaixo da água, submergindo entre as enormes águas vivas é espetacular. O único local onde ela tem paz. Scarlett Johansson mais uma vez entrega um bom trabalho, conseguindo expressar competentemente o  lado “ghost” no “shell”, uma sombra de quem Mira já foi um dia. Com olhares profundos e ao mesmo tempo vazios. Ideias opostas, assim como todo o conflito existencial em sua mente. Apesar de contar com um excelente design de produção feito pela Weta e de ótimas referências, senti falta da trilha sonora marcante do anime, que tem um tom bastante contemplativo e reflexivo que somaria demais nestes takes. A trilha mais marcante de Ghost in The Shel só deu o ar da graça na hora dos créditos finais.

Batou e Daisuke também foram apresentados de forma honesta no filme. Batou  funciona bem para mostrar a questão do aperfeiçoamento tecnológico e dar um pouco de humanidade à Major, enquanto que Aramaki, além de representar o elemento onde podemos ver a mão do governo no meio de tanto domínio corporativo como o líder da Section 9, ele também funciona para mostrar como esse mundo é miscigenado e interativo. Todos falam em inglês e ele fala em japonês. Ao mesmo tempo que ele entende a outra língua, ele é entendido com uma outra naturalmente. Aspecto que A Vigilante do Amanhã soube não explicar, e desta forma vemos que o filme não subestima o espectador, deixando-o tirar suas próprias interpretações. Isto acontece em várias situações, até na própria questão de “whitewashing” que a produção fora acusado, por usarem Scarlett Johansson num papel asiático. Em contrapartida, o conceito principal do filme, a procura por sua identidade, é sempre explicado, relembrado e gurgitado para o espectador.

Podemos colocar Daisuke como  figura “paterna” da Major. É com ele em que ela quebra as regras, desobedece, é chamada atenção, mas também é com ele que ela obtém certa “proteção”.  Dra. Ouelet (Juliette Binoche), funcionária da Hanka e principal cabeça no projeto de fusão entre a máquina e o homem, funciona como a figura materna. A Hanka Corporation acredita estar dando o próximo passo evolutivo com este projeto, mas não passa de falácia. Realmente isto tá obvio que é uma falácia, até para o bom andamento do filme. A Hanka seria a conexão do espectador com o futuro governado por grandes corporações, ideia clássica de distopias. Porém, dentro do roteiro do filme, não há um conflito bem construído entre o ideal e o business que nos é proposto em certo momento. Não temos nenhum sentimento idealista que tanto é falado pela Dra. Ouelet que, em certo momento, resiste a ideia do puro negócio, mesmo sabendo de todas as coisas que a Hanka fez para concluir esse projeto. Business, man!  

Entre acertos e erros, no geral Vigilante do Amanhã é um filme competente que entrega o esperado mas que sofre na hora de deslanchar por se conformar em ficar na zona do meio termo. A trama não se entrega ao lado ocidental e também não se aprofunda no oriental. Aposta em seu público, mas não com todas as fichas nos variados momentos de explicação do conceito de identidade e sua busca pela protagonista. No geral não é demérito suficiente para prejudicar o filme, mas também não é mérito o suficiente para ser uma produção condizente com o original Ghost In The Shell. Comparado com outras obras semelhantes de adaptações de animes, é sem dúvida um expoente, porém, assim como estas outras obras, fica aquém do material base.

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Daniel Gustavo

O destino é inexorável.

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