Eu poderia escrever um texto inteiro dizendo o quanto Neil Gaiman é um cara legal e o quão bom é ler suas obras, independente de no final da leitura chegar à conclusão de não ser um bom livro ou HQ. Ler algo de Neil Gaiman é como receber aquela bebida quentinha de alguém que você gosta e, logo após o término da bebida, ficarmos apenas ouvindo essa pessoa falar, não importa o que ela diga, porque sabemos que estamos vivendo algo único por si só. Como prova de o quanto Gaiman é um cara legal, ele teve a ideia de escrever esse O Livro do Cemitério enquanto observava seu filho andar de bicicleta por um cemitério Vitoriano e com a vontade de fazer algo que remetesse ao clássico O livro da Selva de Rudyard Kipling.

Se isso não te gera o mínimo de curiosidade para ler a obra, vá se tratar, nerd (brincadeira galera, relaxem). O Livro do Cemitério, que por algum motivo inexplicável parece ter passado despercebido pelos leitores brasileiros, talvez tenha sido ofuscado pelo lançamento anterior do autor, Coraline.

Ninguém Owens, chamado de Nin, é um garoto que foi criado desde bebê por fantasmas em um cemitério Vitoriano. Nas primeiras páginas do livro, testemunhamos o assassinato de uma família, a família original de Nin que, guiado por algo desconhecido, consegue chegar ao cemitério próximo de sua casa e, assim, fugir do trágico destino de seus parentes. O assassino, chamado apenas de Jack, percebe a falta do bebê e inicia uma busca cega por essa criança. Busca essa que não se concretiza e, assim, Nin se encontra sozinho em um cemitério. Bom, não sozinho; com sua nova família nem um pouco convencional: o casal de fantasmas Owens e cercado por toda uma comunidade de habitantes do cemitério.

Gaiman escolhe nesse livro falar sobre um tema que com certeza deveria causar menos arrepios em todos nós: a morte. Contar-nos a história de alguém que foi criado alheio a esse medo da morte é algo sensacional. As pessoas que Nin mais ama na vida já não estão mais vivas e pra ele não há nada de errado nisso. Não podemos dizer que Nin Owens teve uma infância igual a todas as outras pessoas, mas dentro do possível ele de fato teve uma infância. Nosso protagonista teve aulas de História contadas a partir do ponto de vista de quem de fato viveu a História; aprendeu a ler e escrever com pessoas que viveram há duzentos anos.

Outra ótima sacada de Gaiman é a ambientação do seu protagonista no lugar em que vive. Nin recebe dos moradores do cemitério uma espécie de dom chamado de Liberdade do Cemitério”, que consiste em alguns truques como um tipo de invisibilidade, o dom de assombrar alguém — e até mesmo aterrorizar — e um outro dom de visitar os sonhos de pessoas.

Gaiman também introduz em seu livro mitos do terror clássico, fazendo, assim, a ligação com O Livro da Selva. Nin irá conhecer uma releitura de um vampiro, um lobisomem, e destaque para o excelente capítulo em que conhece o fantasma de uma jovem bruxa. Também temos na história seres chamados de Ghouls. Essa criatura já foi definida de formas tão diferentes em diversas obras que nem sei definir até agora o que elas são. Vamos passear através dos olhos de uma peculiar criança por todo um universo já muito conhecido, mas que não cansamos de continuar consumindo obras sobre eles.

Toda essa gama de criaturas é introduzida no enredo da história de uma forma bem construída. Apesar de ser uma parte episódica do livro,  ela não fica desinteressante, pelo contrário, serve para ir moldando a personalidade do protagonista e criando um caminho de evolução do personagem.

É notável a evolução da narrativa de Gaiman de seu livro de maior sucesso, Deuses Americanos, para O Livro do Cemitério. Dessa vez, é construído um protagonista carismático que toma atitudes a partir de uma lógica bem pensada e definida para o personagem. Em Deuses Americanos, o autor cria um universo muito mais complexo e extremamente interessante, porém nos entrega um protagonista um tanto quanto robótico e insosso, acompanhado de uma descrição exagerada e por vezes desnecessária. Mas o principal ele faz desde sempre: contar uma boa história e isso sempre é bem-vindo.

No livro também contamos com algumas espetaculares ilustrações de Dave McKean, parceiro fiel de Gaiman nos quadrinhos e agora também em livros. McKean faz com seus desenhos uma composição um pouco mais madura da obra. É um livro com um protagonista criança que pode ser lido por jovens, mas que também pode entregar uma excelente mensagem para leitores mais experientes.

Trazer o sobrenatural e, por vezes, o medonho para um campo mais afetivo e diretamente ligado a memórias que temos de nossa infância parece ser onde Gaiman nos arrebata com suas histórias. E o fato de saber brincar com os nossos medos é de uma sordidez encantadora, por mais estranho que isso possa parecer. E é legal que seja estranho, porque na maioria das vezes o que é estranho também é fascinante. Tornar os nossos medos mais palatáveis é o que Gaiman faz de melhor, e eu continuo agradecendo por isso.

Adicione este livro à sua biblioteca!

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