Dois homens se vestindo de mulher para escapar de um grupo de mafiosos, neste meio tempo a dupla travestida acaba experimentando as experiências do sexo feminino no dia a dia. A princípio um roteiro normal, mas se eu te disser que “Quanto mais quente melhor” é de 1959? Certamente um filme minimamente a frente de seu tempo, mas quanto a frente? Não vou dizer aqui que esse é o filme super “desconstruidão”, mas para os padrões de 59 ele toca em grandes tabus. Vamos por partes.

Joe e Jerry são dois músicos malandros de Nova York que acidentalmente acabam presenciando um assassinato da máfia. Para fugir dos criminosos, que desejam eliminar as testemunhas, a dupla aceita um trabalho na Califórnia, mas para isso precisam fingir que são mulheres numa banda feminina. O que já choca na primeira cena é a perseguição de carro dos primeiros dez minutos que é muito impressionante para a época. Carros virando, batendo e deslizando no asfalto de forma louca e sem nenhum efeito especial. A trama se complica quando os músicos encontram Sugar Kane, uma integrante da banda, que acaba mexendo com o coração de Joe.

A primeira coisa que chama atenção nesse filme é o tempo de tela que os atores Tony Curtis e Jack Lemmon ficam vestidos de mulher. Ambos ficam mais de metade do filme como suas personas femininas, até quando estão sozinhos. Este é um longa de comedia, o que poderia ser um grande problema, pois o que é engraçado a alguns anos atrás pode logo perder a graça, mas esta obra tem um “algo” atemporal em seu humor. As situações cômicas são boas por que são inusitadas e te fazem torcer pelos músicos malandros. Sem falar na qualidade dos atores que são ótimos. O ritmo e as falas não parecem algo de 59, pois tudo é muito fluido e por isso devemos bater palmas para Billy Wilder, o diretor, que faz duas horas de filme passarem voando, coisa rara em obras dessa época.

Agora vamos a parte em que podemos aprender algo. Muitas vezes ao longo do filme vemos Joe e Jerry sendo assediados por homens babacas e escutam as mulheres conversando sobre homens de uma forma genuinamente honesta. Outra situação interessante é mostrar a banda feminina festejando e bebendo (durante a Lei Seca) sem moralismos como “uma mulher não deve fazer essas coisas”. Tudo isso é feito de uma forma bem engraçada e leve que deixa o longa agradável de se ver, causado por diálogos muito bem escritos. O mais curioso é ver o personagem Jerry feliz por ter recebido uma proposta de casamento de um velhinho rico a ponto de esquecer que ele está se disfarçando de mulher. Lembre-se: isso foi feito em 1959.

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Mas vamos colocar um pouco do nosso olhar contemporâneo. A personagem de Sugar, interpretada por Marilyn Monroe, pode vir a incomodar. Ela é o típico estereótipo da “loira burra” que deseja arrumar um marido rico para ter uma vida tranquila. Diversas vezes fala sobre como foi maltratada pro diversos homens, mas mesmo assim se apaixonada por esse tipo de cara. Tal personagem nunca ganharia as telas hoje se mantivesse essas características. Até algumas falas de Jerry e Joe são super machistas como “Não quero ser mais beliscado pelos homens, quero beliscar novamente” mostrando que os protagonistas não necessariamente aprenderam algo com sua experiência.

Muitas vezes ouvimos falar de Marilyn Monroe, mas não sabemos o porquê dela ter se tornando um ícone. Esse filme já foi feito na época em que ela era uma estrela tanto que ela se recusava a fazer filmes preto e branco, mas foi convencida por que a maquiagem de Tony Curtis e Jack Lemmon, para parecerem mulheres, os deixava levemente esverdeados e se o filme fosse a cores isso ficaria muito evidente. As histórias de bastidores de Monroe são um tanto cômicas e até ficaram famosas no mundo do cinema. A atriz teve uma enorme dificuldade de decorar algumas falas simples como “It’s me, Sugar” onde ela teve que repetir 47 vezes, sendo que na trigésima o diretor escreveu num quadro negro gigante, atrás das câmeras, a fala para que ela não errasse. Em outra cena onde ela precisava falar “Where’s the bourbon?” enquanto procurava uma garrafa numa gaveta. Marilyn precisou fazer essa cena 59 vezes mesmo com Billy Wilder escrevendo a fala num papel e colocado copias em todas as gavetas da cena para ajudá-la. Dá para imaginar que o clima das gravações não era dos melhores, principalmente entre Tony Curtis e Jack Lemmon em relação a Marilyn Monroe. A cena onde Curtis beija a atriz foi descrita por ele, em entrevistas, como algo semelhante a beijar Adolf Hitler (não sei por que).

Coloco esse filme nesta coluna por vários motivos. O primeiro motivo é o mais simples de todos: o filme é bom até hoje. Segundo motivo: acredito que podemos aprender algo com ele sobre como a arte dos anos 50/60 retratava a relação entre homem e mulher, seja criticando ou ratificando preconceitos. É uma obra que merece a sua atenção se deseja entender mais de cinema de comedia e ainda por cima aprender um pouco sobre história cultural, caso assista de forma crítica. A American Film Institute deu o título de “melhor filme de comedia de todos os tempos” para “Quanto Mais Quente Melhor”, além de cinco indicações ao Oscar, vencedor de três Globos de Ouro onde um dos prêmios foi para Monroe e outro para Jack Lemmon, sendo o terceiro para o filme como um todo.

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Raul Martins

Autor dos livros Cabeça do Embaixador e Onde os sonhos se realizam

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